CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

quinta-feira

VERANICO E MEIO DIA


Foto Liane Neves


Dois textos que se complementam. Escritos naquela hora modorrenta do dia. Aquela hora em que o poema empaca e o poeta adormece.

VERANICO

Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos.
A cidadezinha modorreia...A tarde
Avança, lentamente, como o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga
O poema empaca, o poeta adormece
De chatice
A vida continua indiferente.

in: Preparativos de Viagem

MEIO DIA

A tarde é uma tartaruga com o casco empoeirado a arrastar-se penosamente, as sombras foram-se esconder debaixo da barriga dos cavalos, tudo parece uma íntima quarentena – mas está marcando exatamente meio dia nos olhos dos gatos.

segunda-feira

O LIVRO DA VIDA

Mario em seu quarto - Foto Liane Neves

Comparar a vida com um livro é uma das imagens mais batidas. Que importa? Novidade não é documento. Mas que ansiosa leitura, que suspense. Por que pode terminar sem mais nem menos, às vezes em meio de um capítulo, de uma frase...e, assim, a gente tem que saborear linha por linha, minha filha, para fazê-lo render o mais possível: nada de leitura dinâmica.
In: PREPARATIVOS DE VIAGEM

sexta-feira

DE UM DIÁRIO ÍNTIMO DO SÉCULO XXX

FOTO LIANE NEVES


As mulatas representam aqui o que há de mais brasileiro, a fascinante micigenação das cores brancas e pretas..."fascina-me o contraste absoluto entre ambas"... As mulheres azul celeste, certamente, devem ser chatas demais para um poeta que se diz fascinado pelo contraste. Por isso este texto retirado de "De um Diário Íntimo do Século XXX" é tão fascinante, como o contraste entre as cores branca e negra.


DE UM DIÁRIO ÍNTIMO DO SÉCULO XXX

Juro que não tenho o mínimo preconceito de cor. O que há comigo é que acho umas chatas as mulheres azul-celeste. Piores até que as frutacores.Por que não experimentam o cultivo de mulheres brancas e pretas, que dizem ter sido as peles primitivas nos tempos bárbaros.
Fascina-me o contraste absoluto entre ambas. E se tivesse que escolher entre uma branca e uma preta, não sei o que faria...
Abri-me a esse respeito com meu velho e sábio amigo dr Gregorovirus. Ele pôs-se a discorrer sobre soluções dialéticas, sobre certa mescla de café com leite... Não sei o que é dialética, não sei o que é café, não sei o que é leite. Por que raios esses técnicos não se expressam em língua de gente?
Quando eu ia pedir-lhe mais explicações, ele, com um leve dar de ombros, ergueu-se nos ares, e quando já estava a uns dois metros de altura gritou-me:
- Vou tratar do caso, vou tratar (ele tem a mania de repetir as palavras) A sua única salvação meu pobre amigo é a mulata. A mulata!
Fiquei nas mesmas.
Mario Quintana in: Da Preguiça como Método de Trabalho.
Mulata na janela - Di Cavalcanti

segunda-feira

SONETO PÓSTUMO

Nada permanece igual no tempo, a não ser o próprio tempo. Quintana percebe isso como ninguém. Um velho amor valeu em seu próprio tempo.  Drummond diria: “Mudam-se os tempos/ mudam-se as vontades/ Muda-se o ser”  O tempo  é  implacável  e não tem piedade de nós, pobres e efêmeros humanos. Cecília Meirelles diria: “Talvez pensem que o tempo volta/ E que vens, se o tempo voltar”.  Neste poema Quintana afirma que o tempo não volta e nem o que éramos ou as sensações e sentimentos que sentíamos. “No fim, tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não consegue levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro, o cheiro que tinha um dia o próprio vento...” Ou seja, o tempo como o vento passa...e deixa somente as recordações.

SONETO PÓSTUMO

- Boa Tarde... - Boa Tarde! - E a doce amiga
E eu de novo, lado a lado vamos!
Mas há um não sei quê, que nos intriga:
Parece que um ao outro procuramos...


E, por piedade ou gratidão, tentamos
Representar de novo a história antiga.
Mas vem-me a idéia... nem sei como a diga...
Que fomos outros que nos encontramos!


Não há remédio: é separar-nos pois.
E as nossas mãos amigas se estenderam:
-Até breve!  - Até breve! - E, com espanto


Ficamos a pensar nos outros dois.
Aqueles dois que a tanto já morreram...
E que, um dia se quiseram tanto!

Junho, 1952
Mario Quintana in: Baú de Espantos

quarta-feira

QUEM AMA INVENTA


FOTO DE DANIEL DE ANDRADE SIMÕES


Cecília Meirelles poetizou que “a vida só é possível reinventada” reafirmando o poder recriador da poesia. Mario Quintana complementou dizendo “quem ama inventa as coisas a que ama”. Cecília e Mario, conjugando-se parecem estar a nos dizer: “Se nos amamos, reinventamos a nós mesmos!”


QUEM AMA INVENTA

Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria.
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

Mario Quintana in: A Cor do Invisível


REINVENÇÃO

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meirelles in: Mar absoluto e outros poemas, 1945.


CECÍLIA MEIRELLES
 
 
 


QUEM AMA

Camões escreveu:"Quem ama inventa as penas em que vive." "Quem ama inventa as coisas a que ama," acrescentaria eu se a a tanto me atrevesse.
Mario Quintana in: Da Preguiça como Método de Trabalho

sábado

CANÇÃO DE OUTONO


A cidade de Porto Alegre não seria a mesma sem a grande presença do poeta Mario Quintana, que deixou a sua marca na memória emotiva da capital sul-rio-grandense. Ele opta por sair da sua terra natal – Alegrete - ainda jovem, adotando Porto Alegre como a sua cidade, a cidade de seu coração. Todo esse encantamento face à cidade escolhida, todos os seus quintanares de contemplação, faz de Quintana “o poeta da cidade”. É o poeta da cidade porque esta é tema recorrente na sua lírica, cidade de múltiplas facetas, capaz de despertar sentimentos diversos no poeta. Mas a cidade vai se transformando ao longo do tempo, se modernizando, enquanto o poeta vai envelhecendo. Ambos trilham juntos os caminhos da vida, numa relação de cumplicidade, com direito a diálogos, idealizações, perplexidade, imaginações, sendo um para o outro a grande companhia.
Mario Quintana testemunha as mudanças que ocorrem em Porto Alegre, é aquele que caminha e aprecia as suas ruas, as suas casas antigas, as crianças, o cotidiano. Num momento inesperado, o simples o surpreende e o inspira a poetizar e registrar aquilo que só ele é capaz de perceber.
Notamos que a temática da modernização, em Quintana, associa-se a sentimentos de perda, de abandono, de solidão e de melancolia. O poeta carrega consigo uma dor nostálgica, mostrando uma certa negatividade face à cidade presente. A visão melancólica de Mario Quintana face à transformação do cenário urbano, o seu descontentamento, fica evidente.
Eduardo Lourenço (1999), em seu livro Mitologia da Saudade, delineia uma leve diferenciação entre os sentimentos de melancolia, tristeza, saudade, tédio e nostalgia. Para Lourenço, a saudade, a tristeza e a nostalgia são sentimentos relacionados à perda de alguma coisa, permitindo, assim, o seu afastamento com a idéia de que se vai recuperar algo. Já a melancolia é mais complexa, pois não tem causa precisa.
Em “Canção de Outono”, percebemos as indagações do poeta Mario Quintana na segunda estrofe - “Tristeza? Encanto? Desejo? / Como é possível sabê-lo?”, uma indefinição própria da melancolia, embora ele utilize a palavra tristeza:

CANÇÃO DE OUTONO


O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...
Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dolorido
De carícia a contrapelo...
Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!

Mario Quintana in: Canções

REINCIDÊNCIA


O momento de revolta vem e com a mesma velocidade que vem...passa. Inicia o poeta a reconstrução de um novo jardim de desenganos.

Não, não pude mais com essas cantigas
que nos davam um mórbido prazer!
Cansei-me de cantá-las – bom que o diga –
para a minha princesa adormecer...


Me cansei de guardar cartas antigas
que só faziam amarelecer...
E as palavras tão doces, tão amigas,
Numa bela fogueira as fiz arder


À sua voz fechei os meus ouvidos.
Mas esqueci-me de fechar os olhos...
E assim, não eram dias decorridos,


comecei a servir outros sete anos
e a plantar, entre cardos e entre abrolhos,
mais um lindo jardim de desenganos!

Mario Quintana in: Bau de Espantos

quinta-feira

ESTE SILÊNCIO É FEITO DE AGONIAS

CATAVENTOS - Foto Marcos Serra Lima

Já há algum tempo que não postava nada de A Rua Dos Cataventos, primeira obra de Mario Quintana publicado em 1940. Aqui vai portanto o soneto VII dessa obra.
De quantas imagens poéticas é feito o silêncio. Que força fantasmagórica pode ter a imagem do silêncio. Talvez de uma fragata sem rumo apinhada de meninos mortos. Sim, o silêncio é feito de agonias.

Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.


De encontro à Lua, as hirtas galharias
Estão paradas como nos vitrais
E o luar decalca nas paredes frias
Misteriosas janelas fantasmais...


O silêncio de quando, em alto mar,
Pálida, vaga aparição lunar,
Como um sonho vem vindo essa fragata...


Estranha Nau que não demanda os portos!
Com mastros de marfim, velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos...

Mario Quintana in: A Rua dos Cataventos.

segunda-feira

O FILHO MORTO

Liane Neves

Certa noite confidenciei com um homem sensível num daqueles saudosos cafés da volta do Mercado. Aliás, sempre nos encontrávamos com agrado da minha parte, porque ele era poeta mas inteligente, e suas libações não o tornavam monótono ou repetitivo. Seus soneto me pareciam bons. Tinham até um que de clássico. Compusera um deles em memória de seu filho único, morto na flor da mocidade. Foi naquela noite que ele o recitou para mim, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. E aconteceu que, tempos depois, numa espera de bonde, um jovem que estava fazendo o serviço militar, apresentou-se-me como filho daquele angustiado poeta amigo. Senti-me ilaqueado na minha boa fé, como vulgarmente se diz, e, pela primeira vez que encontrei o poeta, fui logo dizendo:

- Mas Oscar! Como é que tiveste a coragem de me impingires aquele soneto em memória de teu filho vivo?

E ele, com toda a sinceridade:

- Era pra que se morresse...

A resposta, como se vê, foi num estilo nada clássico...mas que mundos e fundos havia nela! A verdade do mundo poético não tem que dar satisfação ao mundo real – eis aí uma tese a defender. Mas fique o leitor descansado: eu não pretendo provar coisa nenhuma... Estou modestamente fazendo uma afirmação.

Mario Quintana in: Caderno H

sábado

BILHETE A HERÁCLITO

Heráclito de Efeso

A modernidade está intimamente ligada à melancolia cujo “eu” é autônomo e múltiplo. Em “Bilhete a Heráclito” percebemos essa idéia dos múltiplos “eus” - advinda do Século XX - onde Quintana diz que não só o rio em que se banha não é mais o mesmo, mas ele também já não é o mesmo.

Tudo deu certo, meu velho Heráclito,
Porque eu sempre consigo
Atravessar esse teu rio
Com o meu eu eternamente outro...
(QUINTANA,

Heráclito de Éfeso (Éfeso, aprox. 540 a.C. - 470 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o "pai da dialética".
Numa série de aforismos, Heráclito enfatiza o caráter mutável da realidade, repetindo uma tese que já surgira nos mitos arcaicos e, com dimensão filosófica, desde os milesianos. Mas em Heráclito a noção de fluxo universal torna-se um mote insistentemente glosado: “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti”.

terça-feira

QUINTANA CAMINHANTE

Mais um poema que desmente a teoria de que Quintana é o poeta das coisas simples. Não é só de coisas simples que trata Quintana. Também trata de temas que nos põem a refletir e que exigem, como disse no poema anterior, várias releituras.

O poema “Elegia número onze” tem um fundo psicológico muito grande. Mostra a necessidade do poeta de perder-se na multidão. Ele lamenta a falta de gente na cidade deserta. Esse poema retoma a idéia dos versos do poeta moderno Antonio Machado – Caminhante / não há caminhos, / faz-se o caminho ao andar (cf. MACHADO, 1973, p. 158).
O poeta caminha pela cidade, e é esse caminhar, segundo James Hillman , que está cada vez menos presente na vida do homem moderno. Ele diz que “a locomoção tornou-se mecanizada, desde os dispositivos de controle remoto até, claro, os automóveis” o que torna cada vez mais desnecessário o caminhar na nossa rotina. A poesia de Quintana consegue perfeitamente retratar o que James Hillman está diagnosticando em 1993. A vida desse novo homem – o homem moderno não chama a atenção de Quintana, pois para ele é sem graça viajar de avião e transitar pelos aeroportos. A locomoção com o automóvel, afirma o autor, é uma experiência visual. Já nos aviões, nem a experiência visual acontece: ALGUMAS VARIAÇÕES SOBRE O MESMO TEMA

V
Tenho pena, isto sim, dos que viajam de avião a
jato:
só conhecem do mundo os aeroportos...
E todos os aeroportos do mundo são iguais,
Excessivamente sanitários
e com anúncios de Coca-Cola.
(QUINTANA)

Hillman diz que “andar acalma”, “caminhando estamos no mundo, encontramo-nos num lugar específico e, ao caminhar nesse espaço, tornamo-lo um lugar, uma moradia ou um território, uma habitação com um nome”. O psicólogo Hillman, analista que trabalha com a alma, decide abordar o tema da cidade, pois, mesmo analisando as pessoas num escritório fechado, ele diz que “é precisamente a rua aquilo que adentra o consultório”. Dessa forma, o seu trabalho se dá com as pessoas da cidade, afirmando que a cidade está na alma delas. Ele aponta para o fato de que a psicologia vem discutindo a questão de a vida urbana ser responsável pelas doenças psíquicas. Vamos nos deliciar portanto com esse maravilhoso poema.

ELEGIA NÚMERO ONZE

Não, não é uma série de pontos de exclamação
-é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas, atônitas
se perguntam se vem ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir estes postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava! São os passos
- são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
- para eles se acenderiam então, como um olhar, todas as cores!
Porque a cidade está cega também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor e o aspecto que tem.
A cidade está cega e parada com o descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
- não existe...
Mario Quintana in: Esconderijo do Tempo

sexta-feira

Mario Quintana: FUNÇÃO


Dizem que Quintana é o poeta das coisas simples. Realmente o é. Consegue transformar em poesia uma ruazinha sossegada ou, um vôo de pássaros sobre uma praça interiorana. Mas Quintana também fala de coisas complicadas, buscando no fundo da alma um sentido, um significado. Suas construções poéticas têm às vezes um sentido psicológico, que exige várias releituras. É o que acontece no poema FUNÇÃO:

O poeta só, num pequeno mundo, que ele compara ao picadeiro de um circo, no qual é movido por fios de Marionete (amarrados em estrelas, talvez comandados por Deus, talvez pelo destino).
O poeta declama seus poemas...tristes, lindos e tristes palavras e dança, como todos nós dançamos, humanidade, no meio do palco, sem saber quem nos olha no escuro.

FUNÇÃO

Me deixaram sozinho no meio do circo
Ou era apenas um pátio uma janela uma rua
uma esquina

Pequenino mundo sem rumo


Até que descobri que todos os meus gestos
Pendiam cada um das estrelas por longos fios invisíveis

E havia súbitas e lindas aparições como aquela das
longas tranças


E todas imitavam tão bem a vida
Que por um momento se chegava a esquecer a sua
cruel inocência do bonecas


E eu dizia depois coisas tão lindas
E tristes
Que não sabia como tinham ido parar em minha boca


E o mais triste não era que aquilo fosse apenas um
jogo cambiante de reflexos


Porque afinal um belo pião dançante
Ou zunindo imóvel
Vive uma vida mais intensa do que a mão ignorada
que o arremessou


E eu danço, tu danças e nós dançamos
Sempre dentro de um círculo implacável de luz
Sem saber quem nos olha atenta ou distraidamente
do escuro...

Mario Quintana in: Apontamentos de História Sobrenatural

domingo

De Mario Quintana: O DEUS VIVO


Disse o poeta Armindo Trevisan sobre as idéias religiosas de Quintana:
“O Mario, a rigor, não praticava nenhuma religião, mas tinha sido educado na religião católica. [...]Em conversas particulares com ele percebi que ele poderia ser qualificado de agnóstico, isto é, alguém que declara não saber com certeza se Deus existe. Eu pessoalmente tenho a impressão de que ele acreditava em Deus, a sua maneira.”

Se as ações humanas e os caminhos percorridos pelos homens na Terra têm algo a ver com Deus, certamente o poema O DEUS VIVO não pode ser mais verdadeiro. Deus está no fundo do poço. Caim retrata a intolerância, a ganância, o preconceito, enfim tudo o que é humano, e Deus, desamparado está no inferno... Quintana considera urgente resgatá-lo, mas para isso é preciso resgatar a nós mesmos...humanidade.
Bernardo

O DEUS VIVO

Deus não está no céu. Deus está no fundo do poço
onde o deixaram tombar
- Caim, o que fizeste do teu Deus?!


Suas unhas ensangüentadas arranham em vão as
paredes escorregadias.
Deus está no inferno...


É preciso que lhe emprestemos todas as nossas forças, todo o nosso alento
para trazê-lo ao menos à face da terra.


E sentá-lo depois à nossa mesa
e dar-lhe do pão e do nosso vinho


E não deixar que de novo se perca.
Que de novo se perca...nem que seja no céu!

Mario Quintana in: Apontamentos de História Sobrenatural

terça-feira

O QUARTO DE MÁRIO QUINTANA

Quarto de Mario Quintana assombrando(veja reflexo na parede) foto Daniel de Andrade Simões

Este quarto, de Mario Quintana, sua última morada, nos faz imaginar um personagem solitário e disperso, perdido entre seus versos. Quantos poemas Mario não construiu aqui. Talvez ele volte, de vez em quando,a visitar sua última morada terrena. E quando aqui chega deve dizer aos retratos da parede:
"Tú não imaginas como é bom, como é repousante,
Não ter bagagem nenhuma."
E olhando sua velhas coisas, alí tão conservadas...intáctas, deve dizer baixinho:

"Nem sei mais se me matei,
Se morri por distraido,
Se me atiraram do caís"
[]"Eu sigo todo florido
Cadáver desconhecido,
Vogando, lento à deriva,
Nos rios todos do mundo."

E assim vai o poeta dedilhando seus objetos, sua velha cama
e certamente recordará aquele poema, composto na dificuldade da velhice, na lentidão dos movimentos trêmulos e doloridos:

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...


que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.


Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousando em mim.


A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...
Foto de Daniel de Andrade Simões

sexta-feira

Recordações de Mario Quintana

Quintana na Feira do Livro P. Alegre -1986

Sala de espera do consultório. Sala de espera? Não: Sala de recordações. Porque as revistas são tão velhas que a gente, sincronizando (perdão) com as datas delas, transporta-se ao que foi naqueles tempos. Ah! Quando o Ministério se demitiu em massa recordo, eu andava doido pela Maria Helena que andava doida pelo Fabião, que andava doido pela Felisbina... Agora todos voltaram ao juízo e estão casados com outras pessoas. Todos, menos eu. Em compensação juro que esqueci completamente a Maria Helena e, quando a encontro me pergunto:
- Senhor Deus dos desgraçados, esta é aquela?!

Mario Quintana in: Porta Giratória

terça-feira

POEMAS PARA JULIANO O APÓSTATA

Moeda com imagem do imperador Juliano

Flávio Cláudio Juliano,foi imperador Romano de 361 a 363 depois de cristo.Foi o último imperador da família de Constantino I, O Grande. Constantino em 313 d.c, publicou o èdito de Milão, pondo fim à perseguição dos Cristãos em Roma. Juliano, foi chamado de apóstata porque renegou a religião cristã e tentou implantar o retorno do paganismo. Cristão de formação, durante a vida adota a religião pagã tradicional romana e, embora não persiga os cristãos passa a fazer de tudo para fortalecer o velho culto aos deuses pagãos.

O poema nos leva também ao grande escritor grego Nikos Kazantzákis que produziu a tragédia Juliano o Apóstata.
Kazantzákis não vê no Imperador o adorador fanático da antigüidade sepultada, da religião agonizante, mas sim inspirado do ideal de uma ressurreição de liberação, que percebe à sua volta homens, espíritos, coisas, idéias e símbolos, tudo impiedosamente reprimido, debelado pelo cristianismo. Parece que é este pensamente que nortei o poema de Quintana.
Não consta na bibliografia de Quintana haver feito a tradução da tragédia de Kazantzákis, autor de peças famosas como Zorba o Grego, A Odisséia, Cristo Recrucificado, A ùltima Tentação de Cristo, mas certamente deve ter nela se inspirado para escrever o poema abaixo.


POEMAS PARA JULIANO O APÓSTATA

No tempo dos deuses tudo
era simples como eles
e natural e humano
e eles reinavam no mundo.


Mas veio um deus usurpador e único
e tornou o mundo incompreensível
porque o seu reino não era deste mundo.


E até hoje ninguém soube por que ele expulsou
os outros deuses
e ficou reinando sozinho
e fez todos os homens pecarem
- coisas que eles jamais haviam feito antes –
porque pecar com inocência não é pecar...


E os homens conheceram o terror maravilhoso do pecado
-e assim o novo deus lhes trouxe uma volúpia nova.

Mario Quintana in:Apontamentos de História Sobrenatural

Mario Quintana - Foto Liane Neves

sexta-feira

De Mario Quintana: AEROPORTO

Foto: Daniel de Andrade Simões


A partida suave, silenciosa, sem nenhuma bagagem. Meu outro nome, minha outra imagem, não mais o ser terreno...outro, sim outro, que existe escondido nas profundezas da alma e que se revelará, súbito e maravilhosamente.
Bernardo

AEROPORTO

Eu também, eu também hei de estar no
Grande Aeroporto um dia,
Entre os outros viajantes sem bagagem...
Tu não imaginas como é bom, como é repousante
Não ter bagagem nenhuma!
Porém, no auto-falante,
Serei chamado por outro nome que não o meu...
Um nome conhecido apenas pelos anjos.
Mas eu reconhecerei o meu nome
Como reconheço no espelho a minha imagem de cada dia.
E cada chamada será uma súbita, uma maravilhosa revelação.
Menos
Para umas poucas criaturas...
Aquelas criaturas que mereceram ser conhecidas
Ainda neste mundo,
Ainda nesta vida
Pelo seu nome único e verdadeiro!
Mario Quintana in: Preparativos para a Viagem


As fotos acima são obra da lente sensível de Daniel de Andrade Simões postadas em seu excelente blog http://saitica.blogspot.com/

O APOIO FAMILIAR NA FORMAÇÃO DO POETA QUINTANA

Foto Liane Neves

"Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneirade ser. O leitor de poesia é também um poeta. Para mim o
poeta não é essa espécie saltitante que chamam de Relações
Públicas. O poeta é Relações Íntimas. Dele com o leitor. E
não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta é que descobre
o leitor, que o revela a si mesmo. O poeta que “me
descobriu” foi o Antônio Nobre do Só. Tínhamos lá em casa
aquela bela edição ilustrada por Antônio Carneiro, e não sei
em que mãos estará agora. A propósito, o jornalista e poeta
Egydio Squeff comprou num sebo um exemplar do Só
onde estava escrito: “Este é o quarto exemplar do Só que eu
compro. Os outros todos me roubaram.” E vinha assinado
em baixo: Álvaro Moreyra. Em meu primeiro livro, A Rua
dos Cataventos, tenho, por dever e devoção, um soneto a ele
dedicado e mais uma referência em outro poema. Isto bastou
para acusarem em mim a influência de Antônio Nobre.
Protesto: não há influência – há confluência, pois a gente só
gosta de quem se parece com a gente. Porém, mais remota do
que a presença de Antônio Nobre, está, entre as recordações
da infância, a voz grave e pausada de meu pai a recitar-me o
episódio do Gigante Adamastor. Aquele ritmo severo ensinava-
me a profundidade da poesia e até hoje me assombra
aquele verso: “Que o menor mal de todos seja a morte”. Em
compensação minha mãe, educada no Uruguai, recitava-me
Espronceda e Becquer: “Ya se van las oscuras golondrinas”.
A par disso aprendi a ler muito cedo, sem quase saber que
estava lendo. E ouso afirmar que as verdadeiras influências
na minha formação foram Camões e O tico-tico.
Não sei se tive infância. Fui um menino doente, por trás de
uma janela. Creio que foi a ele que eu dediquei depois um
soneto de A Rua dos Cataventos. O meu “elemento” era a poesia.
Comecei a ser poeta como um cachorro que cai n’água e
não sabia que sabia nadar. (Sabia.) E o meio fami liar ajudou.
Tanto meu pai e minha mãe, como meus irmãos Milton e
Marie ta, a quem dediquei meu primeiro livro, gostavam de
poesia. Nunca tive a clássica incompreensão da família, de
que tanto se vangloriam alguns poe tas. Aliás, foi meu próprio
irmão Milton, quinze anos mais velho do que eu, quem
me ensinou a metrificar. Como tive a infância muito presa,
devido à precariedade da saúde, quando pude soltei-me no
mundo. Um choque. Fui criado num aviário e solto num potreiro.
Daí talvez a explicação da minha posterior e prolongada
boemia.
Mario Quintana

segunda-feira

MONOTONIA


Há tanta monotonia no mundo que até a felicidade cansa, afirma Quintana. Será talvez que a busca incansável de algo novo leve à frustração justamente pela descoberta da não existência do tal novo? Afinal o novo é novo por tão pouco tempo que uma vez alcançado perde sua graça e motivação. Quintana chega à conclusão que a morte tem aí uma das suas funções : "ainda bem que tudo acaba se não[...] eu me matava!"

MONOTONIA
É segundo por segundo
Que vai o tempo medindo
Todas as coisas do mundo
Num só tic-tac, em suma,
Há tanta monotonia
Que até a felicidade,
Como goteira num balde,
Cansa, aborrece, enfastia...
E a própria dor - quem diria? -
A própria dor acostuma.
E vão se revezando, assim,
Dia e noite, sol e bruma...
E isto afinal não cansa?
Já não há gosto e desgosto
Quando é prevista a mudança.
Ai que vida!
Ainda bem que tudo acaba...
Ai que vida tão cumprida...
Se não houvesse a morte, Maria,
Eu me matava!

Mario Quintana in: Preparativos de Viagem

sexta-feira

MARIO QUINTANA, PÉ DE PILÃO...E EU. (Érico Veríssimo)

Edgar Koetz

“Ser poeta é saber ver o mundo como o vêem os anjos, as fadas, e ao mesmo tempo possuir o dom de comunicar a quem o lê o que ele vê e sente”... Erico Veríssimo escreveu esta frase ao se referir a Mario Quintana como um dos cinco maiores poetas do Brasil.
No dia do aniversário do poeta nada melhor que ler este comentário de Érico Veríssimo ao livro PÉ DE PILÃO que Mario publicou em 1975:

Meus amigos, na minha opinião Mário Quintana é hoje em dia um dos cinco maiores poetas de todo o Brasil. Pé de Pilão é um livro que ele escreveu para crianças de várias idades, mas que também pode – e deve! – ser lido por gente grande. Mas... como é que eu entro nessa história toda? Ora, eu não entro. Fico cá de fora da casa do livro, gritando para todos os ouvidos e a todos os ventos que o livro é bonito, divertido, faz a gente rir e querer saber “que é que vem depois...” Os desenhos são muito bons e foram feitos por um famoso artista, Edgar Koetz, , gaucho como o autor da aventura.
Desenho Edgar Koetz

Conheço Mario Quintana faz uns bons quarenta anos. É o sujeito mais “diferente” que tenho encontrado na vida. Antes de tudo é um poeta, e ser poeta não é apenas fazer versos, prosa com rima (carvão – coração...carinho-passarinho...etc...) Ser poeta é saber ver o mundo como o vêem os anjos, as fadas, e ao mesmo tempo possuir o dom de comunicar a quem o lê o que ele vê e sente, em resumo, é ter os olhos para revelar a face secreta das pessoas e das coisas. Mario Quintana é um homem que caminha sozinho, como aquele gato do conto inglês. Bom, vou revelar a vocês um segredo. Descobri outro dia que o Quintana na verdade é um anjo disfarçado de homem. Às vezes quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora.
(Ah! Como anjo seu nome não é Mario e sim Malaquias.)
O Anjo Quintana - Henrique Rodrigues Pinto

Quintana é também mágico, só que suas mágicas são feitas com palavras. Agora, amigos, prestem atenção. Pé de Pilão foi feito todo em versos, isto é, com frases que tem compasso de música, e com rimas. Quem já souber ler, que leia este conto em voz alta e clara. Se não souber, peça a outra pessoa – mãe, pai, irmão ou irmã mais velha, baba, alguma titia... – que se encarregue disso. E, se durante a leitura por acaso aparecer na história alguma palavra que vocês nunca tenham visto antes, perguntem a quem sabe o que ela significa. É assim que a gente aprende sua própria língua... e a dos estrangeiros.
Pois é. Deixo com vocês o caso do Pé de Pilão, que se vai transformando, de verso em verso, no caso de outros personagens, bem como um rio que vai correndo para o mar e encontrando no caminho pessoas, animais e coisas que o leitor não esperava. Leiam esta história – ou escutem sua leitura – mais de uma vez. E se alguém um dia perguntar quem é Mario Quintana, podem responder sem medo de errar que ele é um dos maiores poetas do nosso Brasil. È isto que pensa quem gosta dele como de um irmão, um tal de
Érico Veríssimo
“Mas a infância, ó poetas, não é mesmo azul?
Quanto a mim, eu venho há muito desconfiando de que a infância é uma invenção do adulto.E o passado, uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima... A memória vai tudo colorindo”
Mario Quintana – Caderno H
foto Liane Neves

segunda-feira

104 anos de Mário Quintana

Foto Dulce Helfer

Dia 30 de julho Quintana completaria 104 anos de idade. O poeta de Alegrete que dedicou sua vida à poesia nasceu dia 30 de julho de 1906.

O VELHO

O que eu mais temo não é o Sono Eterno, mas a possibilidade de uma insônia eterna, o que seria uma verdadeira estopada, um suplício sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigarro, e disse-me:
- Não é como tu pensas, todos nós trabalhamos numa série infinita de escritórios (cada geração de mortos num deles) onde a gente se entrega a um sério trabalho de estatística: tem-se que anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respectivo número, pois isso de nomes é mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo, ou porque se mataram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam criminosa a prática da eutanásia...uma pena!
- E fora do expediente, o que fazem vocês?
- Bem, a hora do almoço não deixa de ser divertida por causa dos Santos: põem-se a discutis acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades.
- E nos serões, eles jogam prenda?
- Mais respeito, seu vivo!... Bem! Nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo.
- E Deus ? Me conta como é Ele...
- Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi...
- Só certa vez? Mas ele não está sempre no céu?
- Bem, tu deves compreender que Ele se preocupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre e na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra.
- Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta lá como foi que desconfiaste de ter visto o Velho?
- Foi a tempos, eu era recém chegado, quando uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos nas costas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal que me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bate-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada...não foi nada...” Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez, se Eu quiser!”.
Mario Quintana in: Poemas para a Infância

REFLEXÕES DO CADERNO H

Foto Liane Neves

Selecionei alguns textos que Quintana publicou no CADERNO H . Cada um deles nos leva a viajar por  muitas reflexões. Boa viagem.
COISAS DO TEMPO
Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros.


CUIDADO!
A nossa própria alma apanha-nos em flagrante nos espelhos que olhamos sem querer.


TENHO PENA DA MORTE
Tenho pena da morte – cadela faminta – a que deixamos a carne doente e finalmente os ossos, miseráveis que somos... O resto é indevorável


MAS TUDO É NOVO DEBAIXO DO SOL
Resmungam os velhos – “Não há nada de novo debaixo do sol” – e nem se lembram dos que, neste momento, estão recriando o mundo: os poetas, as artistas, os recém-nascidos.


DA SAUDADE
A saudade que dói mais fundo – e irremediavelmente – é a saudade que temos de nós.


DO CONHECIMENTO
Tudo já está nas enciclopédias e todas dizem as mesmas coisas. Nenhuma delas nos podem dar uma visão inédita do mundo. Por isso é que leio os poetas. Só com os poetas se pode aprender algo novo.

NADA SOBROU
As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas...Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou.  Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.
Mario Quintana in: CADERNO H

ADMIRAÇÃO DE QUINTANA POR ANTONIO NOBRE

Mario Quintana - Foto Liane Neves

Apesar da morte prematura, e de só ter publicado em vida uma obra, a coletânea Só, António Nobre influenciou os grandes nomes do modernismo português, Nasceu na cidade do Porto em 1867 e faleceu em 1900 de tuberculose. António Nobre referindo-se ao seu único livro publicado em vida, Só (1892), declara que é o livro mais triste que há em Portugal. Apesar disso, e de ser real o sentimento de tristeza e de exílio que perpassa em toda a sua obra, ela aparece marcada pela memória de uma infância feliz no norte de Portugal. Quintana lhe dedica o poema XI de A Rua dos Cataventos:

POEMA XI
Para Antonio Nobre

Contigo fiz, ainda em menininho,
Todo o meu Curso d’Alma... E desde cedo
Aprendi a sofrer devagarinho,
A guardar meu amor como um segredo...

Nas minhas chagas vinhas por o dedo
E eu era o Triste, o Doido, o Pobrezinho!
Amava, à noite, as Luas de bruxedo,
Chamava o Pôr-do-sol de Meu Padrinho...

Anto querido, esse teu livro “Só”
Encheu de luar a minha infância triste!
E ninguém mais há de ficar tão só:

Sofreste a nossa dor, como Jesus...
E nesta Costa d’África surgiste
Para ajudar-nos a levar a Cruz!...

Mario Quintana in: A Rua dos Cataventos

Também no poema abaixo Quintana fala de sua admiração por Antonio Nobre:

POEMA XXIX
Para o Sebastião

Olha! Eu folheio o nosso Livro Santo...
Lembras-te? O “Só”! Que vida, aquela vida...
Vivíamos os dois na Torre de Anto...
Torre tão alta... em pleno azul erguida!...

O resto, que importava?... E no entretanto
Tu deixaste a leitura interrompida...
E em vão, nos versos que tu lias tanto,
Inda procuro a tua voz perdida...


E continuo a ler, nessa ilusão
De que talvez me estejas escutando...
Porém tu dormes... Que dormir profundo!


E os pobres versos do Anto lá se vão...
Um por um... como folhas...despencando...
Sobre as águas tristonhas do Outro Mundo...
Mario Quintana in A Rua dos Cataventos

Talvez nos ajude a entender a admiração de Quintana por Antonio Nobre
lendo um dos sonetos de SÓ:


E a vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil. Tudo é ilusão.
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!

Mas a arte, o lar, um filho, António? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição.

Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva...essa que traz.

Mas uma mão: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da morte e que se chama A PAZ!


Antonio Nobre in: SÓ, 1892

domingo

POEMA XXVIII de A RUA DOS CATAVENTOS

Foto Liane Neves

Novamente os momentos que antecedem a morte surgem na poesia de Quintana. Não como medo, dor ou pesar; “minha alma louca há de sair cantando naquela nuvem...” E os castelos de sonhos e delírios ele os vai construindo ao som do realejo, até os últimos momentos de vida.

Sobre a coberta o lívido marfim
Dos meus dedos compridos, amarelos...
Fora, um realejo toca para mim
Valsas antigas, velhos ritornelos.


E esquecido que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
Tão altos sempre...cada vez mais belos!...
Nem D. Quixote teve morte assim...


Mas que ouço? Quem será que está chorando?
Se soubésseis o quanto isto me enfada!
...E eu fico a olhar o céu pela janela...


Minha alma louca há de sair cantando
Naquela nuvem que lá está parada
E mais parece um lindo barco a vela!...

segunda-feira

O MURO

Foto Liane Neves

Quem já não encontrou um amigo de infância e descobre desencantado que daquele menino alegre, brincalhão nada restou.É outro agora construido com esse mesmo material dos anos.
Quintana consegue retratar esse desencanto de forma poética em:

O MURO


E eis que, depois de longos, longos anos, encontrei o amigo.
E vi que ele, com esse mesmo material dos anos, havia construído a sua vida...
No entanto, através daquele muro caiado e sólido, como descobrir agora a voz antiga, o sorriso bom do Emparedado?
Dele só restava o nome, como numa lápide.

O OVO SAPIENS

Mãos do poeta externando pensamentos - foto Liane Neves


"O homem pensa para dentro", não é capaz de enxergar a totalidade, apenas o que está em sua ótica, em sua ideologia. O homem, esse limitado ser, incapaz de, como a árvore, criar inumeráveis folhas, diferentes umas das outras, algumas maiores e mais verdes, outras menores e mais claras. "O homem tem a estreita cabeça fechada", mas Quintana tem esperanças, e acredita no humano quando conclui: "Porém não para sempre meu Deus...não para sempre!"

O OVO SAPIENS


O homem não pode pensar os longos pensamentos
esparsos e dispersos das árvores rumorejando,
das árvores criando inumeravelmente as folhas,
o homem não pode distendê-los irresponsáveis e
belos como as nuvens cardadas pelo vento,
o homem pensa para dentro, e disto orgulha-se,
porque
na sua cabeça cabe o universo
como num ovo.
Na sua cabeça está o universo
- aprisionado -
tal como estava dentro da mão de Deus
antes que seus dedos se abrissem na infinita
distensibilidade da Criação.
O homem tem a pobre, a estreita cabeça
fechada...
(Porém não para sempre, meu Deus...Não para sempre!)

Mario Quintana in: Apontamentos de História Sobrenatural

OS CAMINHOS DE QUINTANA

Foto Liane Neves


Os pés do poeta, que caminha por sua Porto Alegre, certamente maquinando novos versos. Os sapatos gastos e a sua bengala, amiga inseparável de seus últimos anos, retratados poeticamente por Liane Neves. Os poemas abaixo, do dono dos sapatos, dizem tudo desses momentos de caminhadas pela sua "Porto Alegre de incríveis subidas e descidas"
Bernardo

SAPATOS, ETC.
Os sapatos, de preferência velhos e informes, com irregulares placas de barro ou apenas foscos, são muito mais belos que os sapatos lustradinhos, brilhantes que nem parquês. Qual o esteta que não sabe dessas coisas? Nem há de ser por outro motivo que os escultores jamais passam a ferro as calças de suas estátuas. Aqui em Porto Alegre só conheço uma delas, com caprichosos vincos de bronze - é o que logo se nota, porque não parece natural. Natural é a natureza. E a natureza é hippie. Onde já se viu uma árvore ridiculamente simétrica? E qual foi a Brasília que jamais teve esse incomparável imprevisto "ao Deus dará" de uma Itaoca? Bem, nunca falta um leitor para indagar que moralidade a tirar disso tudo... Nenhuma! Eu estava falando de beleza.
(Caderno H)

UM PÉ DEPOIS DO OUTRO
Será do tempo? Será do quê? Os meus sapatos rincham, os meus sapatos cantam de alegria. E eu vou andando e aguardando – cá de cima – que o seu oculto motivo chegue afinal até o meu coração.
(Poemas para a infância)

CALÇADO DE VERÃO
Quando o tempo está seco, os sapatos ficam tão contentes que se põem a cantar.
(Poemas para a infância)

ACHADOS E PERDIDOS
Eu conduzo minha poesia como um burro sem rabo
Nesta minha Porto Alegre de incríveis subidas e descidas.
Suo como o Diabo
E desconfio
Que meus melhores poemas terão caído pelo caminho...
Mas como saber quais são?!
Alguém por acaso os pegará do chão
E vai ficar pensando que o espantoso achado
Pertence a ele...unicamente a ele!
(Velório sem defunto)

FORAM-SE ABRINDO AOS POUCOS AS ESTRELAS

O céu estrelado sempre encantou o ser humano. Quanto já não foi escrito sobre ele. Quanto já não se refletiu sob ele. Encantamento, mistério e poesia. Tudo isso um céu estrelado inspira. Um céu estrelado mostra nossa pequenez diante do universo infinito e uma beleza tão grande que jamais saberemos imitar com toda a tecnologia disponível, nem mesmo nos planetários.
Quintana também se encantou com o céu estrelado e revela seu encantamento neste poema fazendo alusão a um amor findo.
Certamente pode escrever estes versos nas primeiras décadas do século XX, pois a partir daí o céu foi perdendo seu encanto na sua Porto Alegre, como em todas as grandes metrópoles onde a luz artificial ofusca e encobre o brilho das estrelas.
Quintana mesmo mais tarde registraria:
“Cidade grande: dia sem pássaros, noite sem estrelas.”
Bernardo

Foram-se abrindo aos poucos as estrelas...
De margaridas lindo campo em flor!
Tão alto o céu!... Pudesse eu ir colhê-las...
Diria alguma si me tens amor...


Estrelas altas! Que me importam elas?
Tão longe estão!... Tão longe deste mundo...
Trêmulo bando de distantes velas
Ancoradas no azul do céu profundo...


Porém meu coração quase parou,
Lá foram voando as esperanças minhas
Quando uma, dentre aquelas estrelinhas,


Deus a guie! Do céu se despencou...
Com certeza era o amor que tu me tinhas
Que repentinamente se acabou!...


Foto Liane Neves

Mario Quintana in: A Rua dos Cataventos,

domingo

MARIO QUINTANA E LIANE NEVES



Mario Quintana e Liane Neves


O fotografo tem a mesma função do poeta:
Eternizar o momento que passa.
Mario Quintana

Este poema Mario dedicou a fotografa que dele tirou mais de 1000 fotos, eternizando a imagem do poeta. Que seria do mundo sem as imagens. Elas ao “eternizarem o momento”,
cumprem uma função histórica. E Quintana foi perfeito ao comparar as fotos de Liane Neves a poemas, poemas em imagens, porque Liane mais que eternizar o momento em cada foto, o eterniza com a beleza de uma poesia. Não são simples retratos, são retratos que transmitem sentimento. Liane diz que “ para fotografar pessoas é preciso compreendê-las, enxergar dentro delas”, e isso fica muito claro aos admiradores de Quintana, quando percorrem as fotos que Liane fez dele.
Visite o site de Liane Neves, há lá uma galeria de fotos de Mario Quintana além de conhecer melhor esta profissional que trabalha a muitos anos para a Editora Abril e Revista Caras.
Liane Neves, gentilmente permitiu que este blog utiliza-se suas fotos para enriquecê-lo, o que me deixa bastante honrado.

Site de Liane Neves:

http://www.lianeneves.com/

Bernardo

foto Liane Neves

segunda-feira

UM SIMPLES LUGAR COMUM

foto Liane Neves


Um poema que poderia ser escrito hoje. Teria o mesmo sentido e a mesmo impacto.

UM SIMPLES LUGAR COMUM


Todos esses roubos, todos esses assassinatos vêm apenas da fome
Que conturba esse nosso terrível mundo atual.
Ah, como seria bom se rebentasse uma nova Guerra Internacional!
Que fácil uma vida nova em um novo mundo
Para os que ficássemos sobrando do lado de cá!
(Velório sem defunto)

SÔBOLOS RIOS QUE VÃO

O título dado por Quintana a este poema foi tirado do poema de Camões: BABEL E SIÃO. A palavra "sôbolos" utilizada  no poema tem como significado: "sobre o". Eis a estrofe do poema de Camões  em que ela aparece:

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
[...]
e por aí se desenvolve um longo poema   reflexivo e filosófico, que reflete a precariedade do destino; a transitoriedade da vida; a fugacidade do tempo e da beleza;a desarmonia da vida e distância entre o que se vive e o que se sonha.

Bernardo

Quintana, 1976 -Arquivo Zero Hora


SÔBOLOS RIOS QUE VÃO

Olha, eu talvez seja esse
cadaver desconhecido
que avistam sob uma ponte
com relativo interesse:

Nem sei mais se me matei
se morri por distraido
se me atiraram do cais

--- o mistério é mais profundo,
muito mais...

Vida, sonho de um segundo
---isso é vulgar mas atroz ---
e tenho pena de mim
como a que eu tenho de voz...

e sigo
todo florido
destes nossos velhos sonhos
imortais

---o misterioso tão sem fim ---

eu sigo todo florido
cadáver desconhecido
vogando, lento, à deriva
nos rios todos do mundo!
Mario Quintana in: Esconderijos do Tempo.

O CHALÉ DA PRAÇA-QUINZE


O Chalé da Praça XV é um dos mais tradicionais Bar Chopp Restaurantes de Porto Alegre. Localiza-se em pleno centro da cidade, de frente ao Mercado Público, no meio da praça XV de Novembro.
O primeiro Chalé foi inaugurado em 22 de novembro de 1885, como um quiosque para venda de sorvetes. Foi reformado em 1909 e 1911, e novamente em 1971, após um incêndio. Entrando em processo de degradação, o contrato com o permissionário foi revogado, e em 25 de junho de 1998, o Chalé foi tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal, mantendo contudo sua função de restaurante. Constitui uma área de encontros e lazer bastante freqüentada no centro da cidade, graças principalmente à sua localização, às árvores a seu redor, à sua culinária saborosa e à música ao vivo.

O CHALÉ DA PRAÇA-QUINZE
O Chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bidu, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo, mas no poço artesiano de si mesmo.
Me lembro do Reynaldo, redondo, pacato, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala.
Me lembro do Cavalcanti, com a sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão.
Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bom compagnon de silence!”.
Esse silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos...Pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.
Era o rio da poesia?
O rio da harmoniosa confusão das almas?
Agora é apenas o rio do tempo que passou.
Mario Quintana - Caderno H

MAIS TEXTOS E IMAGENS DE QUINTANA, VISITE AO LADO A SALA DE IMAGENS.

domingo

O MEU POETA MARIO QUINTANA

fotos de Daniel de Andrade Simões*


TAIS LUSO DE CARVALHO*


Revelo que aprendi a gostar de poesia através de Mário Quintana. E como é delicioso ler seus poemas quando estamos tristes e amargas... Por sermos acarinhadas e envoltas por doces palavras, a tristeza vai se dispersando e a alma vai ficando leve...

Quando leio Quintana, sinto um poeta que entendeu a vida de uma maneira única, que falava da solidão, da bondade e da felicidade com a mesma tranqüilidade que falava na sua ‘doce prometida’ – a morte.
Falava com a sabedoria de quem não apenas passou pela vida; mas deixou que a vida passasse, que rolasse e que esperneasse... E seguia ele com suas musas, com seus sonhos e quem sabe com seus devaneios...
E que delícia são seus poemas que falam de tudo, de uma maneira translúcida, com uma deliciosa ironia e um sarcasmo ferino! Mas assim era ele; dava a impressão de que brincava com a vida.
Já andei esbarrando com muitos escritores nos shoppings, em livrarias, na Feira do Livro e nos eventos culturais de Porto Alegre e olhava ali... olhava lá... Via todos, falei com alguns, mas nunca vi o meu poeta. Nunca pude dizer olha ali o Quintana!!
Mas não sei se ao vê-lo não ficaria muda e parada! Sim, porque quem conheceu o poeta – ao menos pela televisão – lembra de sua ironia refinada e surpreendente. Dava seu recado sem tradução, e a gente que se virasse, que aprendesse a captar o espírito da coisa.
Aprendi com ele a ver as belezas de Porto Alegre, suas ruas antigas, suas ladeiras, a beleza do vento numa tarde de outono. Aprendi a amar a nossa gente. Aprendi como é linda a simplicidade. Aprendi que é na simplicidade que conseguimos tocar todas as almas. E ele conseguiu. E como conseguiu!
Quando leio o seu poema O Mapa , lembro que também passei pelas mesmas esquinas esquisitas, talvez as mesmas moças eu vi... E caminhei pelas mesmas ruas que ele caminhou. Também já pensei, se no dia em que eu for poeira ou folha lavada, também farei parte do nada?
Seus poemas consolam. Aprendi que um dia, quando a morte chegar de mansinho e disser: Anda, vem dormir... Talvez eu já esteja preparada.
Levarei a mágoa de nunca ter visto meu poeta de perto, levarei um ciúme de não ter sido uma de suas musas... Quem não gostaria de inspirar o poeta em suas noites de solidão e talvez de agonia, fazendo parte de seus eternos rabiscos?
Mas depois de ter lido muitos de seus poemas até já perdi minha aflição: que eu passarei e todos passarão, é certo: só não se repetirá o que aconteceu no dia em que Deus o levou: fez dele um PASSARINHO!
Poeminha do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(1978)







*Tais, artista plástica e cronista, escreve em um belíssimo blog sobre os mais variados temas. Admiradora de nosso poeta se propôs a elaborar esta crônica  na semana de aniversário de falecimento de Mario Quintana. Visite seu blog: http://www.taisluso.blogspot.com/
*Daniel de Andrade Simões, fotógrafo, cineasta e escritor, também detentor de um belíssimo e instigante blog onde não só as imagens são um forte mas também a luta dos excluidos, cedeu gentilmente as fotos desta página como várias outras do blog para homenagear o poeta. Visite seu blog: http://www.saitica.blogspot.com/.


terça-feira

ESSE GOSTO DE NUNCA E DE SEMPRE

foto Liane Neves

Dia 5 de maio próximo completar-se-ão 16 anos do falecimento de nosso poeta. Quintana Eterno, como nos anos anteriores trará um texto especial para a data, escrito por Tais Luso de Carvalho e fotos inéditas do poeta, gentilmente cedidas por Daniel de Andrade Simões. Acho que o poema que hoje vos apresento retrata bem claramente o que Quintana representa para nós, seus admiradores: esse gosto do nunca e do sempre. O tempo era uma de suas matérias, como para Drumond, mas não apenas o tempo presente, dos homens presentes, mas também o saudoso tempo da infância, com o silêncio dos velhos corredores e os detalhes guardados na memória, como as veias azuis das mãos do velho pai. No mais, basta apenas ler o poema. Está tudo alí tão claro e cristalino como a luz da lua que iluminava as esquinas noturnas da cidade interiorana por onde o poeta andou, anotando na memória os versos do próximo poema, retirado do perfume da noite, da neblina escura e por vezes misteriosa e do cantar do grilos... ah! os grilos...

Poesia, a minha velha amiga...

Eu entrego-lhe tudo
a saber: o silêncio dos velhos corredores
uma esquina, uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina, a tua câmara de horrores.
E os grilos? Não estão ouvindo, lá fora, os grilos? Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.
Entrego-lhe grilos aos milhões
um lápis verde
um retrato amarelecido
um velho ovo de costura
os teus pecados
as reivindicações as explicações
menos o dar de ombros e os risos contidos
mas todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...
Pois bem, às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que parece nada tem
 a ver com os ingredientes mas que tem por isso mesmo um sabor total:
eternamente esse gosto de nunca e de sempre

Mario Quintana

Foto Liane neves