CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

sexta-feira

ERA UMA RUA TÃO ANTIGA...


Para Telmo Vergara

Era uma rua tão antiga, tão distante
que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada...
Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante
de quem tornasse a ver uma primeira namorada

em todo o seu feitiço do primeiro instante.
E a noite, sobre a rua, era toda estrelada...
Havia, aqui e ali, cadeiras na calçada...
E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante,

dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais
como essas velhas ruas que parecem irreais
e a gente, ao vê-las, diz: “Meu Deus, mas isto é um sonho!”

Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho...
São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente,
estão sonhando o mundo para a gente!

De: Apontamentos de História Sobrenatural

O Chalé da Praça Quinze


O chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bilo, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado – não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chop, que era de fato o que estava acontecendo – mas no poço artesiano de si mesmo.
Me lembro do Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala.
Me lembro do Cavalcanti com a sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão.
Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos...essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valery: “Oh mon bom compagnon de silence”.
Este silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isso não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos...Pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.
Era o rio da poesia?
O rio da harmoniosa confusão das almas?
Agora é apenas o rio do tempo que passou.
De: Caderno H

quinta-feira

AS TRINTA LINHAS



Um dia, Álvaro Moreira, já avô, contou-me que seu pai ainda lhe dizia: “Mas Alvinho, por que tu não escreves coisas de mais fôlego?” E ele, espalmando as mãos num gesto de desculpa: “Mas eu não tenho fôlego, Papai...” Depois dessa história, eu não precisava dizer mais nada. Contudo, não me sai da lembrança um professor dos meus tempos de ginásio que, ao dar-nos o tema para a Redação de Português, dizia: “Não adianta escreverem muito meninos, porque só leio a primeira página; o resto, eu rasgo” E assim nos dava, ao mesmo tempo, a primeira e a melhor lição de estilo, obrigando-nos a reter as rédeas de Pégaso e a dizer tudo (que, aliás, não podia ser muito) nas trinta linhas de papel almaço, contando título e assinatura. A ele, pois, ao saudoso major Leonardo Ribeiro, a minha gratidão e a de meus leitores.
Mario Quintana in: Caderno H

ARQUITETURA FUNCIONAL

Foto Liane Neves

Casas sem mistério, sem o encanto dos porões e sotãos que fazem o poeta viajar com a  imaginação. As casas novas e funcionais trazem o desencanto da realidade fria e nua. Nelas não cabe o sonho que é o secreto visitante dos poetas.

Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas.
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações
         vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma...tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não tem porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hospede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa.
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas...)
E as casa novas não tem ao menos aqueles longos,
intermináveis corredores
Que a lua vinha às vezes assombrar!

De: Apontamentos de História Sobrenatural

Centro de Cultura Mario Quintana - um dos principais complexos culturais da cidade de Porto Alegre e do país com salas de teatro, cinema, exposições, bibliotecas, ludoteca, discoteca e cafés. Transformado a partir antigo Hotel Magestic, projetado pelo arquiteto Theodor Wiedersphan, se configurando em 2 edifícios interligados por passarelas sendo o edificio da ala oeste construído entre 1916 e 1918 e a ala leste entre 1926 e 1933, foi até a sua morte casa do principal poeta do estado.(foto Juan Pablo Morino - CLICK NAS FOTOS PARA AMPLIA-LAS

Detalhe da Travessa dos Cataventos, maneira ao qual o poeta se referia a esta passagem, pois reparava que o vento que passava por ela revirava o vestido das moças que por ela passavam.(foto Ricardo André Frantz)

quarta-feira

POEMA DA CIRCUNSTÂNCIA


Foto Liane Neves

É muito interessante essa dicotomia de Quintana. Ao mesmo tempo em que amava a sua Porto Alegre, cidade que escolheu para viver toda a sua vida, sentia a falta das pequenas cidades interioranas. Talvez fosse isso mesmo que o fazia viver em Porto Alegre, esse cultivar da nostalgia que o tornava produtivo como poeta.
É celebre aquele seu pensamento:

Cidades grandes: dias sem pássaros, noites sem estrelas.

POEMA DA CIRCUNSTÂNCIA
Onde estão os meus verdes?
Os meus azuis?
O arranha-céu comeu!
E ainda falam nos mastodontes, nos brontossauros,
nos tiranossauros,
Que mais sei eu...
Os verdadeiros monstros, os Papões, são eles, os arranha céus!
Daqui
Do fundo
Das suas goelas
Só vemos o céu, estreitamente, através de suas empinadas
gargantas ressecas.
Para que lhes serviu beberem tanta luz?!
Defronte
Á janela onde trabalho
Há uma grande árvore...
Mas já estão gestando um monstro de permeio!
Sim, uma grande árvore...Enquanto há verde,
Pastai, pastai, os olhos meus...
Uma grande árvore muito verde...Ah,
Todos os meus olhares são de adeus
Como um último olhar de um condenado!

De: Apontamentos de História Sobrenatural

terça-feira

SE O POETA FALAR NUM GATO

EDY LIMA E QUINTANA

Escritora , dramaturga e jornalista, Edy Lima hoje com 85 anos, foi uma paixão de Mario Quintana na década de 1940:
"Só percebi o entusiasmo dele por mim depois de velha, quando reli seus manuscritos seis anos atrás. Estavam perdidos e os reencontrei durante a arrumação da minha mudança para São Paulo, quando estava deixando o Rio de Janeiro."

SE O POETA FALAR NUM GATO
Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade...
se falar numa esquina mal e mal iluminada...
numa sacada... num jogo de dominó...
se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...
se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...
Se não falar em nada
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!

De: Esconderijos do Tempo

segunda-feira

DATA E DEDICATÓRIA


Teus poemas, não os dates nunca... um poema
Não pertence ao Tempo...Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas.
Não os dates, porém;
As almas não entendem disso...
De: Baú dos Espantos

domingo

De Sapato florido

FOTO LUIZ EDUARDO ACHUTTI

Não sou ligado muito em questões técnico-literárias, prefiro captar na arte o sentimento, a emoção, a temática. Para alguns Quintana é classificado como neo-simbolista devido ao tom místico e espiritualista apresentado em muitos de seus versos. Para mim Quintana é poesia e isso basta.

OS FANTASMAS DO PASSADO

E não te lembras aquela vez em que...?

Faço que me lembro. Rio. Solto saudosos suspiros e exclamações de puro gozo. Oh! Que monstruosa e implacável memória a dos nossos companheiros de infância.

E depois, como estão envelhecidos, os pobres diabos!

É o que os torna ainda mais antipáticos.


DO INEDITO

E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te de que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável povo do outro lado do mundo, quase do outro lado da vida – uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado...Nós os antípodas, somos assim.

SAPATO FLORIDO, 1948

sábado

O VENTO E A CANÇÃO

Quintana,Helio Ricciardi,Alcy Cheuiche

O VENTO E A CANÇÃO

Para Tânia Carvalhal

Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o vôo do poema não pode parar.

sexta-feira

SAPATO FLORIDO


Na obra Sapato florido Quintana mistura prosa e verso, não só na forma, mas também no conteúdo. Apresenta uma obra diferente daquela oferecida ao leitor por um livro de poemas. Quintana declara isso no texto abaixo:


SUSTO

Isso foi há muito tempo, na infância provinciana do
autor, quando havia serões em família.

Juquinha está lendo em voz alta, A Confederação
Dos Tamoios.

Tarararararara, tarararararara

Tarararararara, tarararararara

Lá pelas tantas, Gabriela deu o estrilo:

- Mas não tem rima!

Sensação. Ninguém parava de não acreditar. Juquinha,
Desamparado, lê às pressas os finais dos últimos versos...
quérulo... branco... tuba... inane...vaga...
Infinitamente...

Meu Deus! Como poderia ser aquilo?!

A rima deve estar no meio – diz, sentencioso, o major
Pitaluga

E todos suspiraram, agradecidos.

Sapato florido, Ed. Globo, 1948, p 116

OS VIRA LUAS

Todos lhes dão, com uma disfarçada ternura, o nome, tão apropriado de vira-latas. Mas e os vira-luas? Ah! Ninguém se lembra desses outros vagabundos noturnos, que vivem farejando a lua, fuçando a lua, insaciavelmente, para aplacar uma outra fome, uma outra miséria, que não é a do corpo...

VIVER

Vovô ganhou mais um dia. Sentado na copa, de pijama e chinelas, enrola o primeiro cigarro e espero o gostoso café com leite.
Lili, matinal como um passarinho, também espera o café com leite.
Tal e qual vovô.
Pois só as crianças e os velhos conhecem a volúpia de viver dia a dia, hora a hora, e suas esperas e desejos nunca se estendem além de cinco minutos.

Mario Quintana in: Sapato Florido

quinta-feira

PEQUENA CRÕNICA POLICIAL


“Não me ajeito com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco... Não há que substitua o sabor da comunicação direta”.

Pequena crônica policial
Jazia no chão, sem vida,
estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade, das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos

quarta-feira

QUANDO EU ME FOR

Os anos são apenas linhas imaginárias e as pessoas é que devem decretar quando estão no fim da idade.


Quando eu me for

Quando eu me for, os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!


Os velhinhos
Como os velhinhos - quando uns bons velhinhos
São belos, apesar de tudo!
Decerto deve vir uma luz de dentro deles...
Que bem nos faz sua presença!
Cada um deles é o próprio avô
Daquele menininho que durante a vida inteira /Não conseguiu jamais morrer dentro de nós!

Mario Quintana in: Velório sem defunto

terça-feira

AULA INAUGURAL

MARCEL MARCEAU

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis
Como na guerra do Paraguai
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência de metros homéricos.
Fora do ritmo só a danação.
Fora da poesia não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança.
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança como David diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas...
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.
(Sabem todas as almas perdidas...)
O solene canto é um archote nas trevas.
(Sabem todas as almas perdidas...)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível
Ritmo de teus pés,
Deixa rugir o Caos atônito...

segunda-feira

DO CADERNO H

CRÔNICA
Ah, essas pequenas coisas, tão quotidianas, tão prosaicas às vezes, de que se compõe meticulosamente a tessitura de um poema...talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas uma espécie de crônica da eternidade.


TEMPO PERDIDO
Havia um tempo de cadeira na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a clarabóia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio da parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.

FRUSTRAÇÃO

Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques e não podem sair viajando pelas correntezas do mundo.

domingo

COMENTANDO O "CANÇÃO DE DOMINGO"


A Rua do Poeta

Há uma rua em Paris, uma pequena rua, mas importante porque no centro, uma rua de uma quadra só, a que deram o nome do poeta Guillaume Apollinaire. Nessa ficam os fundos de dois edifícios públicos que só tem entrada pela frente e nenhuma porta do lado oposto. Nenhum endereço. Resultado: é uma rua que existe e não existe. Que está e não está. O que deve divertir e ao mesmo tempo deixar encantado o autor de “Chanson du Mal-Aimé”.
Porque o reino do poeta...bem, não me venham dizer que não é deste mundo. Este e o outro mundo, o poeta não os delimita: unifica-os. O reino do poeta é uma espécie de Reino Unido de Céu e da Terra.
E começo a desconfiar que foi por isso mesmo que um dia anotei numa de minhas CANÇÕES:

“O céu estava na rua?
A rua estava no céu?”

O que em verdade não deixa de ser uma interrogação afirmativa. E que terminava positivamente assim:

“Mas o olhar mais azul
Foi ela quem me deu!”

Esta peça, escrevi-a em princípios da década de 40, que foi quando li a noticia referente à rua do poeta. Assim, me perdoem se não consigo citar comprovadamente a data e a fonte. Aliás, em matéria de poesia – que importam as datas? O que importa, é que, com aquele batismo por uma rua assim, foi de fato um poema, um comovente poema que a municipalidade de Paris fez sem querer.

Mario Quintana in: A Vaca e o Hipógrafo

CANÇÃO DE DOMINGO


“A poesia não é refúgio, é um aprofundamento da vida”
 
 


A Rua do Poeta


Há uma rua em Paris, uma pequena rua, mas importante porque no centro, uma rua de uma quadra só, a que deram o nome do poeta Guillaume Apollinaire. Nessa ficam os fundos de dois edifícios públicos que só tem entrada pela frente e nenhuma porta do lado oposto. Nenhum endereço. Resultado: é uma rua que existe e não existe. Que está e não está. O que deve divertir e ao mesmo tempo deixar encantado o autor de “Chanson du Mal-Aimé”.

Porque o reino do poeta...bem, não me venham dizer que não é deste mundo. Este e o outro mundo, o poeta não os delimita: unifica-os. O reino do poeta é uma espécie de Reino Unido de Céu e da Terra.
E começo a desconfiar que foi por isso mesmo que um dia anotei numa de minhas CANÇÕES:

“O céu estava na rua?
A rua estava no céu?”

O que em verdade não deixa de ser uma interrogação afirmativa. E que terminava positivamente assim:

“Mas o olhar mais azul
Foi ela quem me deu!”

Esta peça, escrevi-a em princípios da década de 40, que foi quando li a noticia referente à rua do poeta. Assim, me perdoem se não consigo citar comprovadamente a data e a fonte. Aliás, em matéria de poesia – que importam as datas? O que importa, é que, com aquele batismo por uma rua assim, foi de fato um poema, um comovente poema que a municipalidade de Paris fez sem querer.

Mario Quintana in: A Vaca e o Hipogrifo

Canção de Domingo

Que dança que não se dança?
Que trança que não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.


Que canto que não se canta
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo aprendiz.


O Céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!
Mario Quintana in: Canções

sábado

EU FAÇO VERSOS COMO OS SALTIMBANCOS


Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai Amadas, nos próprios bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos

“Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!”
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
”Que tédio!” o coro dos Amigos clama.

“Mas que vos dar de novo e de imprevisto?”
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
“Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!”


De Mario Quintana in: A rua dos cataventos

sexta-feira

DE: A RUA DOS CATAVENTOS

Praça da Matriz,Paraty,Rio, na manhã de 4 DE JULHO DE 2008. São os cataventos gigantes produzidos pelas escolas da região em homenagem ao livro “A Rua dos Cataventos".


Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
“Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!”
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!

Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista...Não,
Meu pobre anjo... É...simplesmente... a Vida!

Mario Quintana in: A rua dos Cataventos

quinta-feira

De: A RUA DOS CATAVENTOS


Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele houve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha do menino doente...

quarta-feira

OS AMIGOS POETAS

A foto abaixo já foi postada no Blog anteriormente, inclusive com histórico. Foi tirada por ocasião da comemoração dos 60 anos de Quintana. Mas como ela tem tudo a ver com o poema hoje postado, onde Quintana declara sua admiração e respeito aos amigos poetas resolvi postá-la novamente.

Quintana e Amigos
Drumond-Vinicius-Bandeira-Quintana e Mendes Campos


TRES POEMAS QUE ME ROUBARAM

Lá pelas tantas menos um quarto eu suspirei num poema:
“Vontade de escrever ‘Sagesse’ de Verlaine...”
Mas o que eu tenho vontade mesmo
É de haver escrito “A pedra no meio do caminho”
a “Balada & Canha”, a “Estrela da manhã”,
se
- Ó Musa Infiel,
não te houvessem possuído antes
Carlos, Augusto e Manuel!...

terça-feira

DO CADERNO H


PÁGINA DA HISTÓRIA

De uma História Universal editada no século XXXIII: “Os homens do século XX, talvez por motivos que só a miséria explicaria, costumavam aglomerar-se inconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o fato a não se sabe que misterioso pânico ao simples contato com a natureza: mas isso é matéria de ficcionistas, místicos e poetas... O historiador sabe apenas a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço e arejamento, que poderiam alojar vários milhões de individuas. Era por assim dizer, uma vida de insetos – mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes.”

domingo

MÃE

Mãe e filho - Pablo Picasso

Mãe...São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o céu tem três letras
E nelas cabe o infinito
Para louvar a nossa mãe,
Todo bem que se disser
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer

Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do CÉU
E apenas menor que Deus!

Mário Quintana

sábado

FLORICULTURA DO CERRADO


Não tem o que comentar, basta ler. A clareza de Quintana é cristalina, como a água que falta aos retirantes.

Quando a árvore não dá frutos
seus galhos se contorcem
como mãos de enterrados vivos,
os galhos desnudos,
ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus,
uma lenta procissão de retirantes...
De vez em quando um tomba,
exausto à beira do caminho
porque não há no lábio o frescor da água.
A doçura do fruto...

Retirantes - Candido Portinari

quinta-feira

A IMAGEM PERDIDA

Quintana morreu em 5 de maio de 1994, aos 87 anos e deixou como herança sua grande obra poética. E faz parte dessa herança, além de tudo o que já tinha sido publicado, os seus pertences pessoais, como livros, prêmios, objetos preciosos como originais manuscritos e datilografados, fotos, correspondências, óculos, críticas e publicações sobre o autor e provavelmente material inédito.
Todo esse acervo foi entregue ao Centro de Memória Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pela herdeira de Quintana, a sobrinha-neta Elena, para que seja preservado e divulgado.
Um dos poemas manuscritos, encontrados no acervo é:

A IMAGEM PERDIDA

Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca... uma taça quebrada...)
eu só tenho um valor estimativo.
Nos olhos que me querem é que eu vivo
esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
refletirá meu vulto vago e esquivo...
E cerraram-se os olhos das amadas,
o meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...
E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
muitas vezes, parei... e, nos espelhos,
procuro em vão minha perdida imagem!

quarta-feira

ESSA LEMBRANÇA QUE NOS VEM


Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...
Essa lembrança...mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! Tão perdida
que nem se possa saber mais de quem!
Noite de autografos

terça-feira

QUINTANA VIVE NAS POESIAS IMITANDO PASSARINHOS


"...Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão... que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades, às pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim...e que valeu a pena....”
Adriana Britto


Há exatos 15 anos morria o nosso poetinha, em Porto Alegre, aos 87 anos.

"Eu fui um menino por trás de uma vidraça, nasci no ano da descoberta do gás neon."

Morreu de problemas cardiacos e respiratórios agravados pelo hábito de fumar.Deixou escritos 56 livros entre os seus e as traduções.

"Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo. Nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão".

Quintana dizia que quando morresse, "levaria junto apenas as madrugadas, pôr-de-sóis, algum luar, asas em bando, mais o rir das primeiras namoradas".
"Érico Veríssimo deixou o seguinte comentário sobre o amigo:""Vou revelar a vocês um segredo: descobri outro dia que o Quintana, na verdade, é um anjo disfarçado de homem. Às vezes,quando ele se descuida ao vestir o casado, suas asas ficam de fora".

BERNARDO

segunda-feira

O SILÊNCIO


O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo
Como um filme que houvesse perdido de repente o som.
Vejo homens, mulheres: peixes abrindo e fechando a boca num aquário.
Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas dos estádios...
Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos carnavais
Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo trottoir.
Às vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no seu palanque,
Obrigado a ficar olhando
Intermináveis desfiles, torneios, procissões, tudo isso...
Oh! Decididamente o meu reino não é deste mundo!
Nem do outro...

sábado

O HOMEM E A ÁGUA

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

A SEMANA QUE SE INICIA AMANHÃ É UMA SEMANA ESPECIAL PARA O BLOG. QUINTANA MORREU NO DIA 5 DE MAIO DE 1994, AOS 87 ANOS,DEIXANDO COMO HERANÇA SUA GRANDE OBRA POÉTICA.

O HOMEM E A ÁGUA
Deixa-me ser o que eu sou,
o que sempre fui,
um rio que vai fluindo.
E o meu destino é seguir...
seguir para o mar.
O mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...
Mario Quintana