CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

terça-feira

CATASTROFE


O meu esporte único é a Luta corpo a corpo com o meu Anjo da
Guarda.
Lutamos tanto pelo que queremos
Que no final ficaremos redondamente mortos no chão,
Para maior alívio de Nosso Senhor,
Para sempre livre de nós dois!

[Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990]

domingo

MAIS UM POUCO DE MARIO


Nomes Feios
Início de mais uma madrugada. Mario chega à pensão em que morava, na Barros Cassal, perto da Avenida Independência, e é mal recebido pelos cachorros. Reage aos latidos com todos os palavrões disponíveis. Na calçada, os pintores Waldeny Elias e Gastão Hofstaetter, que passaram a noite bebendo com ele e vieram deixá-lo em casa, assistem à cena.
Em meio à gritaria, abre-se a janela e surge a dona da pensão:
- Mas o que é isso, seu Mario! O senhor, um homem tão culto, dizendo essas barbaridades!
Ele se defende:
- É que a senhora não sabe os nomes que os seus cachorros estão me dizendo…
XXX
Autografando um de seus livros com a tranqüilidade costumeira, diz uma coisa ou outra às crianças da fila, quando é apresentado a um ministro de Estado de passagem por Porto Alegre e que estava ali para os rapapés de praxe. Curvando o corpo para pegar o autógrafo, o político confessa, tentando ser gentil:
- Gosto muito de seus versinhos.
E Quintana, abrindo aquele seu sorriso maroto de sempre, agradece:
- Muito obrigado por sua opiniãozinha.
XXX
Mario passava as tardes enfurnado na redação. Era raro o momento em que ele não era importunado por visitantes, curiosos, políticos e até mesmo jovens poetas, que iam sempre lhe pedir conselhos. Um de seus colegas do tempo do Correio do Povo, Jayme Copstein, trabalhava a uma mesa de Mário, que sempre recebia gente puxando conversa ou pedindo coisas.Com o tempo Copstein percebeu que, sempre que a conversa ao lado acabava, o visitante saia olhando Jayme de cara feia, com o tempo começou a ficar intrigado. Um dia resolveu perguntar ao Mário por que todo mundo que ia pedir alguma coisa ao poeta parecia brabo com ele que não tinha nada a ver com a história:
- É que eu sempre digo que tu não deixas – explicou Quintana sério.

sexta-feira

UM POUCO DE MARIO 5


Mario distraia-se com as palavras como o transeunte que se perdia pelas ruas de seu longo andar e de seu repouso.A fama só aumentava o seu mito, de que um poeta deve agir como tal o tempo todo. Levava todo o tempo do mundo para traduzir Charles Morgan, Proust e Virgínia Woolf, causando a irritação dos irmãos Bertaso então editores da Livraria do Globo, que impunham datas de entrega que Quintana sempre protelava em favor de uma tradução ideal. Certa vez Mario irrompeu no escritório de Henrique Bertaso. Não gostou das mudanças nas provas de sua tradução de A Fonte, de Morgan. Onde o poeta havia escrito: “te amarei para sempre”, o revisor colocou “amar-te-ei para sempre”. E gracejou: “mas como pode seu Henrique? Já imaginou como seria o filho desse ‘amar-te-ei’, seria um monstrinho certamente...”
Quando editava a seção “Jornal dos Jornais” no extinto O Estado do Rio Grande , era obrigado a condensar o material que chegava por telegrama de outras localidades. Como todo editor precisava contar as letras para encaixar o texto. Achou o serviço tão chato que resolveu versificar as noticias. Fazia as coisas rimadas e fez um título com, no alto um alexandrino, abaixo um decassílabo e depois um setissilabo. O dono do jornal, o político Raul Pilla, indignou-se com o inusitado tratado de versificação: “Esse título está em desacordo com os editoriais! Por acaso o senhor lê o nosso jornal? Resposta do poeta: “Eu não lia mesmo. Afinal, eu trabalho aqui...”
Quintana e Henfil - FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

Bernardo

quinta-feira

A SURPRESA DE SER


Ser, existir é surpreendente para qualquer mortal, que dirá quando esse mortal é um poeta e, mais ainda, quando esse poeta é Mario Quintana.
Nesse poema Mario descreve a partir do nascer e crescer de uma flor o encantamento da existência, da simples existência que a maioria dos mortais, não poetas passam por ela sem perceber.

A SURPRESA DE SER

A florzinha
Crescendo
Subia
Subia
Direito
Pro céu
Como na história de Joãozinho e o Pé de Feijão.
Joãozinho era eu
Na relva estendido
Atento ao mistério das formigas que trabalhavam tanto...
E as nuvens, no alto, pasmadas, olhavam...
E as torres, imóveis de espanto, entre vôos ariscos
Olhavam, olhavam...
E a água do arroio arregalava bolhas atônitas
Em torno de cada pedra que encontrava...
Porque todas as coisas que estavam dentro do balão
Azul daquela hora
Eram curiosas e ingênuas como a flor qua nascia
E cheias do tímido encantamento de se encontrarem juntas,
Olhando-se

quarta-feira

VIDEO

Um pequeno vídeo com momentos e poemas declamados pelo próprio Mario.

terça-feira

INDIVISIVEIS


O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.
Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...
Maria Alice Estrella, poeta, com Quintana 1989

segunda-feira

EVOLUÇÃO


Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais

e ficamos repousando no fundo do mar.

O mar onde tudo recomeça...

Onde tudo se refaz...

Até que, um dia, nós criaremos asas.

E andaremos no ar como se anda em terra.


[in: Esconderijos do Tempo]

sábado

TENTA ESQUECER-ME


Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir...
é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!
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sexta-feira

UMA ALEGRIA PARA SEMPRE

MARIO EM 1954

Mario dedica este poema a Elena Quintana sua sobrinha neta. No poema Mario cita o último grande poeta inglês John Keats falecido em 1820. Poucos poetas escreveram obras tão importantes em tão pouco tempo como John Keats. Morreu com 26 anos de tuberculose. Mandou escrever sobre sua lápide: Aqui descansa o homem cujo nome está escrito sobre a água.
“Uma Alegria Para Sempre” é um poema de reflexão sobre a vida.


Uma Alegria para Sempre

As coisas que não conseguem ser olvidadas
continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre
onde as datas não datam.
Só no mundo do nunca existem lápides...
Que importa se - depois de tudo - tenha "ela" partido
ou que quer que te haja feito, em suma?
Tiveste uma parte da sua vida que foi só tua e, esta,
ela jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte de tua vida presente
e não do teu passado.
E abrem-se no teu sorriso mesmo quando,
deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto deves à ingrata
criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
-disse, há cento e muitos anos,
um poeta inglês que não conseguiu morrer.

Mario Quintana
John Keats

quinta-feira

O TEMPO PARA MARIO QUINTANA

Ah se eu pudesse jogar-me às águas que já passaram! - Foto Liane Neves

Nada é mais intrigante do que o tempo. "O tempo é a minha matéria", dizia Drummond.O tempo é a matéria de todos os poetas, o tempo no qual nos defazemos...ah senhor absoluto da existência. " Ah se eu pudesse jogar-me nas águas que já passaram"  diz Quintana em CANÇÃO DO FUNDO DO TEMPO, mas sabe muito bem o poeta que "ninguém quebra a lei do tempo". Ele é Deus absoluto... o único criador e destruidor de matéria e vida.

CANÇÃO DO FUNDO DO TEMPO

Longe andava meu olhar.
Longe andava...
Creio que jamais te vi...
Linda corça enrodilhada
À espera do sacrifício.
Parece que te vejo agora
Só agora!
Levemente desenhada
Nós móveis biombos do tempo
Feitos de água e de gaze...
Ah! Se eu pudesse jogar-me às águas que já passaram,
Decerto que morreria
Ou ficaria mais louco
Do que os anjos rebelados:
Ninguém quebra a lei do tempo,
Basta os cabelos de mortos
Que se enroscam em meus dedos,
Basta as vozes tão amadas
Que me chamam de tão longe...
Ah! Decerto que eu morreria,
Se é que já não morri!
Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Por trás dos muros do tempo,
As pessoas que eu amava
Amaram-se entre si.

ESCONDERIJOS DO TEMPO

Pela corola do gramofone
O Caruso cantava “Uma Furtiva Lagrima”
E ninguém levava a mal aquele tom fanhoso,
Talvez porque todo mundo sabia que ele
Já estava morto
Se alguém espiasse pela goela do gramofone,
Poderia ver como era o Outro Mundo
Mas ninguém olhava porque devia ser muito,
Muito longe
A ponto de estragar o som daquela maneira.
E o pobre Caruso cantava que te cantava afogado
Pelas águas do tempo
E por isso a sua voz era muito mais pungente
Não é brinquedo estar morto e continuar cantando.
Caruso, eu estou pensando essas coisas não aqui e agora
Mas naquele Café que tu sabes, lá por volta de 1923..
Também não é brinquedo continuar vivo e ficar
Falando para o que passou!

quarta-feira

CANÇÃO DOS ROMANCES PERDIDOS


Oh! Silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...

O silêncio das salas de espera
É aquela última estrela...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde figuram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! Toda essa minha ternura inútil, desaproveitada!...
Mario Quintana

segunda-feira

O amor por Cecilia Meireles

O poeta Mario Quintana nutria grande admiração e respeito por Cecilia Meireles.
O poema abaixo é uma prova de sua admiração.

IN MEMORIAN

Seus poemas desenhavam seu fino hastil
Suas corolas vibrantes como pequeninas violas
(ou era a vibração incessante dos grilos?)
Seus poemas floriam na tapeçaria ondulante dos prados
Onde os colhia a mão das eternamente amadas
(as que morreram jovens são eternamente amadas...)

Seus poemas,
Dentre as páginas de um seu livro,
Apareciam sempre de surpresa,
E era como se a gente descobrisse uma folha seca
Um bilhete de outrora
Uma dor esquecida
Que tem agora o lento e evanescente odor do tempo...

E seus poemas eram, de repente, como uma prece jamais ouvida
Que nossos lábios recitavam – ó temerosa delícia!
Como se numa língua desconhecida,
Sem querer falassem
Da brevidade
E da
Eternidade da vida...

Ah, aquela a quem seguiam os versos ondulantes como dóceis panteras
E deixava por todas as coisas o misterioso reflexo do seu sorriso;
E que na concha de suas mãos, encantada e aflita recebia
A prata das estrelas perdidas...

Nem tudo estará perdido
Enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome: CECILIA...
Mario Quintana

Sei que a reprodução da foto, de 1962, não é muito boa,mas observem: Bandeira dirige-se a algum interlocutor fora da foto, talvez fora do mundo, dormindo profundamente. Drummond faz sua habitual imitação de pedra. Vinícius, malandramente, esgueira seu braço direito por trás de Cecília. E o larguíssimo sorriso de Cecília, ensanduichada por três grandes poetas -ah, como eram grandes!-, faltou apenas a presença de um de seus maiores admiradores, o nosso Mario
Bernardo

sábado

SER E ESTAR


A nuvem, a asa, o vento,
a árvore, a pedra, o morto...

tudo o que está em movimento,
tudo o que está absorto...

aparente é esse alento
de vela rumando um porto

como aparente é o jazimento
de quem na terra achou conforto...

pois tudo o que é está imerso
neste respirar do universo

- ora mais brando ora mais forte
porém sem pausa definida –

e curto é o prazo da vida

e curto é o prazo da morte.

Mario Quintana

sexta-feira

ESCREVO DIANTE DA JANELA ABERTA


Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons.., acerta... desacerta..
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me, estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
De:
A Rua dos Cataventos
Mario Quintana

quarta-feira

ESTE QUARTO


Esta é talvez uma das últimas fotos de Quintana. Tão notável quanto o seu lirismo e sua ironia, era a sua personalidade desassombrada com a vida (“o tempo é uma invenção da morte: não conhece a vida, a verdadeira, em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira”), com o mundo, suas lendas, sua vida errante de endereços provisórios e de preparativos para viagem, dos quartos anônimos que habitou, as jornadas de dor cheias de poesia que flutuava aos vapores de fumo, das xícaras de café forte (mesmo contra recomendação médica. Onde houvesse café ele parava e entrava), e sua paixão pela música de Mahler e o retrato de Cecília Meireles. Como disse o escritor Tabajara Ruas: “era assim que gostávamos de imaginá-lo: solitário, romântico, inacessível”. E essa foi a imagem que a tradição entronizou.
O alegretense Mario dizia que andava de bengala “só por charme”, desde que sofreu um acidente em 1985 (foi atropelado em frente ao Correio do Povo) com seus passos lentos chegou aos 87 anos, como um dos poetas fundamentais de nossa língua.
Seu poema ESTE QUARTO já foi publicado neste blog, mas peço licença para republicá-lo, pois se encaixa perfeitamente na foto acima.
Bernardo

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousando em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...

O poema “Envelhecer” sintetiza em apenas quatro versos toda uma fase da vida humana. Nesse quarteto, o sujeito poético compara o passar do tempo a uma estrada de mão dupla, resumindo a juventude como uma trilha para novas descobertas e a velhice como um atalho para o isolamento e a morte. O poeta, no entanto, não demonstra qualquer tipo de desespero frente a este último “caminho”. Ao contrário, fala dele com profunda resignação.

ENVELHECER
Antes todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Mario Quintana

terça-feira

OS RETRATOS


Os antigos retratos de parede
não conseguem ficar longo tempo abstratos.

Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
porque eles nunca se desumanizam de todo.

Jamais te voltes para trás de repente.
Não, não olhes agora!

O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...

Dessas que a gente inventava para enganar
a solidão dos caminhos sem lua.
Mario Quintana

(Os Retratos de Fayum é o termo moderno para um tipo de retrato realista pintado sobre madeira (carvalho, cedro ou cipreste) em múmias egípcias.Estes estavam em Berlim. Nenhuma colecção egípcia deveria passar sem estes rostos queimados de olhar fixo, os primeiros grandes retratos da história da pintura.)

segunda-feira

CURIOSIDADES SOBRE MÁRIO QUINTANA

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

Por ocasião da segunda visita de João Paulo II a Porto Alegre, em 1991, Mario resolveu escrever uma carta ao Papa. Quintana achava que o Pontífice tinha certa dificuldade em pronunciar o fonema “ao” (irmáos), que sempre soava como aberto. Preocupado, nosso poeta, um paladino do vernáculo, temia que a expressão “pão dos pobres” fosse pronunciada – por exemplo, sem o til, soando como “pau dos pobres”. Na verdade a mensagem era uma singela e bem humorada dica de pronúncia de português. Já debilitado pela idade avançada e com as mãos muito trêmulas para redigir, ele ditou o texto que deveria ser enviado ao Papa João Pulo II. Contudo, quem foi escolhida para enviar a carta ao Vaticano, a dramaturga Eloí Calage, acabou esquecendo o rascunho guardado dentro das páginas de um livro, reencontrado apenas onze anos depois. Por conta do cochilo de Eloí, nem o Papa recebeu a lição de português nem o poeta recebeu a benção...
Para expiar sua culpa, Calege publicou o texto em 2003, na passagem dos nove anos da morte do poeta, pensador, tradutor Mario Quintana, que reproduzo aqui:

Para sua Santidade Papa João Paulo II

"Sendo Vossa Santidade um Poliglota notável, vejo que
não consegue pronunciar o famoso “ão” da
língua portuguesa e tomo a liberdade
de esclarecê-lo sobre esta pronúncia.
Considere o “ao” como dois monossílabos
“ã” mais “o” e tente pronunciá-los cada vez mais
rapidamente. Assim obterá o nosso “ão”.
Esperando a sua benção,
Respeitosamente

Mario Quintana"

sexta-feira

O TEMPO E O VENTO


Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabe o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios de telégrafo

E o vento!

O vento vinha desde o principio do mundo
Estava brincando com seus cabelos...


DE
Apontamentos de História Sobrenatural
Mario Quintana

quarta-feira

QUE BOM FICAR


Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras

E vai a Névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês...
De
A Rua Dos Cata-Ventos
Mario Quintana

terça-feira

Embrace - Egon Schiele



Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!...

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos...E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos!

da obra
A RUA DOS CATA-VENTOS
MARIO QUINTANA

segunda-feira

CIDADEZINHA CHEIA DE GRAÇA


Mario Quintana, o poeta-passarinho de Alegrete e de Porto Alegre.
Neste artigo, nossa análise se volta agora para a CIDADE na poesia de Mario Quintana e, em especial, para as representações da rua.

Já em seu primeiro livro a rua aparece no título: A Rua dos Cataventos e continua figurando em vários sonetos, sendo chamada na intimidade de "ruazinha": Dorme, ruazinha, Minha rua está cheia de pregões, Na minha rua..., É a mesma ruazinha sossegada. Neste livro de Quintana aparecem referências diretas à cidade, como em “Cidadezinha cheia de graça”. Também não é por acaso que o primeiro soneto de "A Rua dos Cataventos" se chama "Escrevo Diante da Janela Aberta", no qual os instrumentos e o processo de escrita se misturam aos elementos da paisagem, inclusive o escritor: "Jogos de luz dançando na folhagem!/ Do que eu ia escrever até me esqueço.../ Pra que pensar? Também sou da paisagem...". Quintana parece ter mantido sempre a janela aberta para ver a rua...o mundo.


CIDADEZINHA CHEIA DE GRAÇA

Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...


Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...


Eu que de longe venho perdido
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!


Lá toda a vida pode morar!
Cidadezinha...tão pequenina
Que toda cabe num só olhar...

De
A Rua dos Cataventos
Mario Quintana

domingo

UM POUCO DE MARIO 4


Quintana é o menestrel que descobriu a poesia de cada dia. Romântico, solitário, boêmio, inacessível. Vestido com apuro era facilmente encontrado de mãos para trás, do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Foi a partir do “Aprendiz de Feiticeiro” que ele descobriu esse imaginário do pensamento livre, da expressão direta, da “conversa ao pé do ouvido”, que certos críticos de sua obra tanto atacaram – mas que jamais o impediu de surpreender e cativar milhões e milhões de admiradores, desde aquele que prestigiava o “Caderno H”, publicado no jornal Correio do Povo, até os pequenos leitores de suas obras infantis, como “Pé de Pilão”. Mas a sua característica marcante eram seus comentários anedóticos, às vezes cáusticos, da poesia colhida aqui e ali, numa praça ou num boteco, desde seus tempos de boêmio: “os relógios são as máquinas de escrever do tempo. Estão sempre fabricando mortalhas”, ou, “a bomba abriu um rombo no teto, de onde se descortinava o céu azul que sorria para os sobreviventes”, ou ainda “o amor é a vitória da imaginação: ninguém consegue ter as qualidades que o amante sente na pessoa amada”.