CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

quarta-feira

HAVIA


Pintura de Maurício Barbosa
 

Todas foram tão importantes, cada qual com sua característica, com seu modo de ser. A que escutava apenas...não apenas, não apenas. A que cortava suas unhas...carinho. A que " passava os poemas a ferro". Todas em seu momento significaram algo, que foi eternizado neste poema, mesmo aquela que em  algum canto ficou esquecida.
Bernardo

HAVIA
Havia naquele tempo tanta coisa,
Tanta coisa que subiria depois como um balão azul
Quando eu precisasse de um pretexto urgente para não me matar...
Havia
A que passava cuidadosamente os meus poemas a ferro
(e nisso eu vejo agora a maior poesia deles...)
Havia a que sabia fingir que me escutava,
Que parecia beber até, com seus grandes olhos,
Os meus solilóquios
(eram tão chatos que só podiam ser solilóquios mesmo...)
E havia, entre todas,
A Eleita,
A que cortava as unhas da minha mão direita
(agora tenho que recorrer a profissionais...)
E havia, entre as demais,
A que ficou não sei onde esquecida

MARIO QUINTANA In: Baú de Espantos

domingo

NO PRINCÍPIO DO FIM

O Grito - Edvard Munch


O som da locomotiva ao longe, interrompendo o silêncio da noite é uma doce lembrança da infância. O silêncio da noite tinha seus segredos e o som do trem trazia uma nostalgia, um sentimento não sei de que. Em "No Princípio do Fim" tudo nos reporta ao passado provincial, à simplicidade de um mundo que não mais existe.
Bernardo

Há ruídos que não se ouvem mais:
- o grito desgarrado de uma locomotiva na madrugada
- os apitos dos guardas noturnos quadriculando
como um mapa a cidade adormecida
- os barbeiros que faziam cantar no ar as suas tesouras
- a matraca do vendedor de cartuchos
- a gaitinha do afiador de facas
- todos esses ruídos que apenas rompiam o silêncio.
E hoje o que mais se precisa é de silêncios
que interrompam os ruídos
Mas que se há de fazer?
Há muitos – a grande maioria – que já nasceram no barulho. E nem sabem, nem notam, por que as suas mentes são tão atordoadas, seus pensamentos tão confusos. Tanto que, na sua bebedeira auricular, só conseguem entender as frases repetitivas da música Pop. E, se esta nossa “civilização” não arrebentar, acabamos um dia perdendo a fala – para que falar? Para que pensar? Ficaremos apenas no batuque:
Tan!tan!tan!tan!tan!

Mario Quintana
A Vaca e o Hipografo
1977

quinta-feira

O POETA E O ESPELHO

O texto abaixo é parte do prefácio escrito por Tânia Franco Carvalhal para o livro “Mario Quintana - Poesia Completa, 2005, Ed Nova Fronteira.
Professora Titular de Teoria Literária e Literatura Comparada e Professora Emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Literaturas da Língua Portuguesa pela UFRGS e Doutora (PhD) em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1981) foi coordenadora e organizadora de inúmeras obras de Mário Quintana.
BERNARDO

QUINTANA COM TÂNIA CARVALHAL


O POETA NO ESPELHO
Esse estranho que mora no espelho
(e é tão mais velho do que eu) olha-me
De um jeito de quem procura advinhar quem sou.
(O antinarciso, Caderno H)

Entre os vários retratos que Mario pintou de si mesmo estão certamente os que povoam os sonetos inaugurais do livro A RUA DOS CATAVENTOS. Ora é um “pobre menino[...] que envelheceu , um dia, de repente!”(soneto VIII), ora o seu próprio Frankenstein “o belo monstro ingênuo e sem memória”(soneto XXVI) – ou “o Idiota desta Aldeia (soneto XXX), sempre um caminhante “rechinam meus sapatos rua em fora”, como dirá no mesmo soneto XXX cuja figura se esvai na ambição de alcançar “a displicência de um fantasma inglês”... (soneto XXXIII) Essas primeiras configurações o situam em uma posição à margem, adotando certa postura romântica, mais como um observador da vida que passa do que nela envolvido. Por isso busca a infância como paraíso eleito, a cidade antiga de pequenas ruas sossegadas, dos bondes, um mundo que, preservado em certos cantos da cidade provinciana, na verdade não existe mais. Daí a necessidade de criar um espaço próprio, uma espécie de Passargada tal qual a imaginada por Manuel Bandeira, como se lê no soneto V:

“E enquanto o mundo todo se esbarronda
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago país de Trebizonda...”

Por vezes a sua Passargada será não um país mas uma rua especial, síntese das ruas da infância e daquelas por onde o poeta ainda nem andou mas que imagina, tal como está no poema “A minha rua”, de A VACA E O HIPOGRIFO:

É uma rua que tenho o vício
De nunca entrar, e onde eu nunca entrei,
E que vai dar na Babilônia, eu sei,
Ou nalgum porto fenício...


Se eu lá entrasse, seria Rei,
Ou morreria nalgum suplício...
Crimes que lá cometerei
Não deixariam nenhum indício...


Lá não se pensa, mas se responde
Conforme as rimas que um outro dá.
Exemplo: templo. É o templo onde


O senhor padre me casará
Com alguma filha de algum Visconde
Ou do Marques de Maricá!