CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

segunda-feira

O MURO

Foto Liane Neves

Quem já não encontrou um amigo de infância e descobre desencantado que daquele menino alegre, brincalhão nada restou.É outro agora construido com esse mesmo material dos anos.
Quintana consegue retratar esse desencanto de forma poética em:

O MURO


E eis que, depois de longos, longos anos, encontrei o amigo.
E vi que ele, com esse mesmo material dos anos, havia construído a sua vida...
No entanto, através daquele muro caiado e sólido, como descobrir agora a voz antiga, o sorriso bom do Emparedado?
Dele só restava o nome, como numa lápide.

O OVO SAPIENS

Mãos do poeta externando pensamentos - foto Liane Neves


"O homem pensa para dentro", não é capaz de enxergar a totalidade, apenas o que está em sua ótica, em sua ideologia. O homem, esse limitado ser, incapaz de, como a árvore, criar inumeráveis folhas, diferentes umas das outras, algumas maiores e mais verdes, outras menores e mais claras. "O homem tem a estreita cabeça fechada", mas Quintana tem esperanças, e acredita no humano quando conclui: "Porém não para sempre meu Deus...não para sempre!"

O OVO SAPIENS


O homem não pode pensar os longos pensamentos
esparsos e dispersos das árvores rumorejando,
das árvores criando inumeravelmente as folhas,
o homem não pode distendê-los irresponsáveis e
belos como as nuvens cardadas pelo vento,
o homem pensa para dentro, e disto orgulha-se,
porque
na sua cabeça cabe o universo
como num ovo.
Na sua cabeça está o universo
- aprisionado -
tal como estava dentro da mão de Deus
antes que seus dedos se abrissem na infinita
distensibilidade da Criação.
O homem tem a pobre, a estreita cabeça
fechada...
(Porém não para sempre, meu Deus...Não para sempre!)

Mario Quintana in: Apontamentos de História Sobrenatural

OS CAMINHOS DE QUINTANA

Foto Liane Neves


Os pés do poeta, que caminha por sua Porto Alegre, certamente maquinando novos versos. Os sapatos gastos e a sua bengala, amiga inseparável de seus últimos anos, retratados poeticamente por Liane Neves. Os poemas abaixo, do dono dos sapatos, dizem tudo desses momentos de caminhadas pela sua "Porto Alegre de incríveis subidas e descidas"
Bernardo

SAPATOS, ETC.
Os sapatos, de preferência velhos e informes, com irregulares placas de barro ou apenas foscos, são muito mais belos que os sapatos lustradinhos, brilhantes que nem parquês. Qual o esteta que não sabe dessas coisas? Nem há de ser por outro motivo que os escultores jamais passam a ferro as calças de suas estátuas. Aqui em Porto Alegre só conheço uma delas, com caprichosos vincos de bronze - é o que logo se nota, porque não parece natural. Natural é a natureza. E a natureza é hippie. Onde já se viu uma árvore ridiculamente simétrica? E qual foi a Brasília que jamais teve esse incomparável imprevisto "ao Deus dará" de uma Itaoca? Bem, nunca falta um leitor para indagar que moralidade a tirar disso tudo... Nenhuma! Eu estava falando de beleza.
(Caderno H)

UM PÉ DEPOIS DO OUTRO
Será do tempo? Será do quê? Os meus sapatos rincham, os meus sapatos cantam de alegria. E eu vou andando e aguardando – cá de cima – que o seu oculto motivo chegue afinal até o meu coração.
(Poemas para a infância)

CALÇADO DE VERÃO
Quando o tempo está seco, os sapatos ficam tão contentes que se põem a cantar.
(Poemas para a infância)

ACHADOS E PERDIDOS
Eu conduzo minha poesia como um burro sem rabo
Nesta minha Porto Alegre de incríveis subidas e descidas.
Suo como o Diabo
E desconfio
Que meus melhores poemas terão caído pelo caminho...
Mas como saber quais são?!
Alguém por acaso os pegará do chão
E vai ficar pensando que o espantoso achado
Pertence a ele...unicamente a ele!
(Velório sem defunto)

FORAM-SE ABRINDO AOS POUCOS AS ESTRELAS

O céu estrelado sempre encantou o ser humano. Quanto já não foi escrito sobre ele. Quanto já não se refletiu sob ele. Encantamento, mistério e poesia. Tudo isso um céu estrelado inspira. Um céu estrelado mostra nossa pequenez diante do universo infinito e uma beleza tão grande que jamais saberemos imitar com toda a tecnologia disponível, nem mesmo nos planetários.
Quintana também se encantou com o céu estrelado e revela seu encantamento neste poema fazendo alusão a um amor findo.
Certamente pode escrever estes versos nas primeiras décadas do século XX, pois a partir daí o céu foi perdendo seu encanto na sua Porto Alegre, como em todas as grandes metrópoles onde a luz artificial ofusca e encobre o brilho das estrelas.
Quintana mesmo mais tarde registraria:
“Cidade grande: dia sem pássaros, noite sem estrelas.”
Bernardo

Foram-se abrindo aos poucos as estrelas...
De margaridas lindo campo em flor!
Tão alto o céu!... Pudesse eu ir colhê-las...
Diria alguma si me tens amor...


Estrelas altas! Que me importam elas?
Tão longe estão!... Tão longe deste mundo...
Trêmulo bando de distantes velas
Ancoradas no azul do céu profundo...


Porém meu coração quase parou,
Lá foram voando as esperanças minhas
Quando uma, dentre aquelas estrelinhas,


Deus a guie! Do céu se despencou...
Com certeza era o amor que tu me tinhas
Que repentinamente se acabou!...


Foto Liane Neves

Mario Quintana in: A Rua dos Cataventos,