CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

sábado

REFLEXÕES DE FINAL DE ANO



O ano está agonizando, melhor momento para refletirmos sobre a vida e sobre o futuro não há.Reflitamos embalados nos pensamentos quintanianos tão bem expressos na forma de poesias. E nada melhor que começarmos com ESPERANÇA, aquela que cai quando chega no décimo segundo andar (ou mes) e renasce teimosamente.
BERNARDO

ESPERANÇA


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mario Quintana

terça-feira

PENSAMENTOS QUINTANARES

Uma das frases mais simples e ao mesmo tempo de uma enorme profundidade dita pelo poéta:

"Os livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas"

Nesta cabe uma aula de ecologia e uma aula de história somadas a uma aula de literatura:

“Nesses tempos de céus de cinzas e chumbos, nós precisamos de árvores desesperadamente verdes”

Outra:

"Sonhar é acordar para dentro"

UM POUCO DE MARIO QUINTANA 3


O poeta Mário Quintana morou quase toda a vida em hotéis e pensões. Junto à cama, guardava uma garrafa térmica com café. Na penteadeira, maços de cigarros. "Eu só acendo. Eles é que se fumam." Num canto, a escultura de mulher que ele batizou de Glória tinha caráter utilitário: ali pendurava a boina preta, o cachecol e o guarda-chuva. A foto de um menino ao lado de um vira-lata - "O da direita sou eu", explicava ao visitante - e um enorme pôster de Greta Garbo enfeitava o endereço "provisório" do poeta, que atravessava a noite ouvindo a 4ª Sinfonia de Mahler ou assistindo a filmes de vampiro na sessão Coruja da tevê. "Dizem que sou bom de cama, porque acordo sempre depois do meio-dia..."
Anjo disfarçado
Travesso, irônico, terno, era um "anjo disfarçado de homem", segundo Erico Verissimo. É de Quintana um dos antídotos mais brilhantes para a patrulha ideológica: "Eu nada entendo da questão social/eu faço parte dela, simplesmente." Escreveu no Correio do Povo quase 40 anos. Um dia, um diretor do jornal fez um elogio: "Gostei muito dos seus versinhos." Quintana respondeu de pronto: "Obrigado por sua opiniãozinha." Nunca casou. "Prefiro ser a esperança de muitas do que a desilusão de uma só." Morreu a 5 de março de 1994, aos 87 anos, de pneumonia. "Enquanto me davam a extrema unção/eu estava distraído... Ah, essa mania incorrigível de estar sempre pensando noutra coisa!"
VOCÊ SABIA?
Na cama do hospital, após quebrar o fêmur ao ser atropelado, perguntou: "Anotaram a placa?" Explicaram que o atropelador o havia socorrido e estava identificado. "Vocês não estão entendendo. Quero saber a placa para jogar no bicho!"
Publicado pela Revista "ISTO È" na série: O Brasileiro Do Século - Literatura

"O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar.


Quem a encontra


Salva-se a sí mesmo..."

Mario Quintana
A Cor do Invisivel

segunda-feira

DA PRIMEIRA VEZ EM QUE ME ASSASSINARAM


Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!”


Em "Nova Antologia Poética" - M ario Quintana - Editora Globo
(Obrigada Esther, por essa preciosidade

quarta-feira

VIDEO COM QUINTANA


Neste vídeo alguns pensamentos deste nosso poeta. Todos levam à reflexões. Todos nos dão a verdadeira dimensão da vida e como ela pode ser retratada com palavras e construções poéticas de muita beleza. Bernardo


Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre de lembrança,
Algum brinquedo novo em minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora pois segui...Mas ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino...acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

SOBRE POEMAS E POÉTAS

Painel - Foto de Daniel de Andrade Simões

"Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns superticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio...Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês."
Mario Quintana - A Vaca e o Hipogrifo


"Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente...e não a gente a ele!"
Mario Quintana - A Vaca e o Hipogrifo

"O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade."
Mario Quintana (trecho da Carta)

TUDO TÃO VAGO

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

Um canto de ninar. A mãe embalando o sono da criança aquecida, protegida.
Nunca mais essa sensação retornará. Mas ela ficou presente na memória e sentimos sua falta, quanto mais distante ficamos da infância.
Ninguém mais para acalmar nosso choro, nossa angústia, aliás, choro não há mais, choro é privilegio de criança...como disse o poeta, há o abandono.
Tudo tão vago...na memória, mas para o poeta ela, a mãe, ainda canta para embalar seu sono,lá do céu com certeza.
Desse belo quadro nasceu “Tudo tão Vago”
Bernardo

TUDO TÂO VAGO


Nossa senhora
Na beira do rio
Lavando os paninhos
Do bento filhinho...
(de uma cantiga de ninar)


Tudo tão vago...Sei que havia um rio...
Um choro aflito...Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O menino dormira...Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu...que ao me ver neste abandono
Daí do céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...

Mario Quintana
(Da obra A RUA DOS CATAVENTOS)

quinta-feira

O PROFETA E O POETA


"O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade."

Mario Quintana (trecho da Carta)

quarta-feira

Canção do Dia de Sempre

Quanto o invejo. Esse seu modo de viver e encarar a vida desprendido
das preocupações e compromissos de uma sociedade que nos massacra.
Dividas, crediários, investimentos, isso não faz parte de seu vocabulário...
nem cabe em seus versos.
Viveste Mario...viveste seu tempo de poeta...”dia a dia”...”tão só de momentos”.
Quanta filosofia transmites em “Canção do Dia de Sempre”. “Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!”
Quanto mais te leio, velho amigo, mais aprendo a admirá-lo.

Canção do dia de sempre


Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência...esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana, de CANÇÕES.

Seiscentos e Sessenta e Seis


A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

sexta-feira

OS ARROIOS


Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!

Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...
Mario Quintana (Baú de Espantos)

segunda-feira

AS SETE NAMORADAS


Era uma vez um príncipe que tinha sete namoradas: uma namorada branca, uma namorda amarela, uma namorada preta, uma namorada verde, uma namorada azul..."
Neste ponto interrompi o improviso, para ver o efeito em meu pequeno auditório.
Havia seis pares de olhos deslumbrados. Continuei, então: "... é que uma andava sempre vestida de branco, a outra sempre vestida de amarelo, a outra..."
- Ora! - protestou Lili, interpretando os sentimentos do público - então não havia uma azul de verdade?!
Um fracasso, a minha história. Mas aprendera que o essencial, em histórias para crianças, é que o fantástico seja real por assim dizer, que haja uma namorada azul de verdade, como queria Lili. Nada de explicações lógicas, como acontece nas aventuras do padre Brown, sempre tão maravilhosas no início mas que, depois que o raio do padre começa a raciocinar e destrinchar tudo, deixam certo desapontamento infantil nos leitores adultos.


in: Da Preguiça como Método de Trabalho - 1987

SÓ PARA SÍ



Dona Cômoda tem três gavetas.
E um ar confortável de senhora rica.
Nas gavetas guarda coisas de outros tempos, só para si.
Sempre foi assim, dona Cômoda:
gorda, fechada e egoísta.

Mario Quintana – Sapato Florido - 1948

quinta-feira

REFLEXÕES SOBRE A MORTE


ESTE QUARTO
Não é necessário comentários sobre este poema. Basta lê-lo e senti-lo. Seria bom se a morte fosse para todos um céu que pouco a pouco anoitecesse. Mas tal não ocorre. Para muitos este céu escurece de repente, como uma tormenta que se forma em minutos. Para outros o dia transforma-se em penumbra em segundos...vidas interrompidas. Jamais entenderemos porque é assim. Talvez o errado mesmo seja tentar entender o que é casual e inevitável. Somos pequenos demais para tentar entender a gigantesca ordem universal e talvez divina. Mas isso nos faz humanos, ao contrário dos animais pensamos na morte e sofremos com ela por antecipação. Este é o grande mistério da vida...
Bernardo

ESTE QUARTO


Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousando em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...

De Mario Quintana para Guilhermino Cesa

OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Baú de Espantos

Mario Quintana

terça-feira

AO LONGO DAS JANELAS MORTAS


Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrivel!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso
Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...

Mário Quintana

segunda-feira

UM POUCO DE MARIO QUINTANA 2


Avesso a distinções, Quintana era, de fato, um ser telúrico, um homem simples e um pândego de escol. Boêmio, nefilibata crônico, alienado compulsório, viajante noturno, querubim peripatético das ruas fatigadas de Porto Alegre, tradutor e jornalista que tinha a preguiça como método de trabalho, era poeta-flanêur, que andava pela cidade menosprezando sempre o menor caminho entre dois pontos. Poeta andarilho, numa quadra, pedia cafezinho ou cachaça. Na rua de cima, fazia apostas na loteria ou no bicho. Noutra esquina, se permitia uma pausa para acender um cigarro e admirar uma palmeira Imperial, soturnamente entrevada num canto de paisagem. O ponto de partida era sempre o hotel — Mário sempre foi um soturno habitante provisório, morando em quartos de hotéis. Do Mário reles e urbano, são incontáveis os seus “causos”.

Extraido do texto "Imitando Passarinhos" de Marcelo Xavier (Revista Rabisco

ORIGEM DO CADERNO H


Na redação, tinha por ofício uma coluna, que ele entregava sempre na hora de baixar o jornal, nunca antes. Apesar de poeta, Quintana não podia fugir às contingências da lide de jornal, com hora para entregar as provas dos textos. Como entregava tudo sempre na última hora, Mário batizou sua coluna de Caderno H. Sempre que alguém perguntava sobre o porquê do nome, ele explicava que entregava a coluna sempre “na hora agá”. Passava as tardes enfurnado na redação. Era raro o momento em que ele não era importunado por visitantes, curiosos, políticos ou até mesmo jovens poetas, que iam sempre lhe pedir conselhos. Um de seus colegas do tempo do Correio do Povo, Jayme Copstein, trabalhava a uma mesa de Mário, que sempre recebia gente puxando conversa ou pedindo coisas. Com o tempo, Copstein percebeu que, sempre que a conversa ao lado acabava, o interlocutor de Quintana olhava para Jayme de cara feia, e ia embora. No começo não achou nada, mas, com o tempo, começou a ficar intrigado. Um dia, resolveu perguntar a Mário por que todo mundo que ia pedir alguma coisa ao poeta parecia brabo com ele, que não tinha nada a ver com a história:
— É que eu sempre digo que tu não deixas — explicou Quintana, sério.

O MAPA


A história de “O Mapa” é bastante curiosa, e mostra bem o perfil do escritor lírico, distraído, sempre compelido para o sonho. José Otávio Bertaso, ex-editor da Livraria do Globo, contou certa vez que, no dia em que Quintana entregou os originais do Apontamentos de História Sobrenatural , ficou estático, pensativo, espiando pela janela, do alto do edifício da gráfica da editora, na esquina da avenida Getúlio Vargas com Botafogo, em Porto Alegre, de onde se podia enxergar todo o bairro Menino Deus. Naquele instante, assomado pelo instante mágico da paisagem que, involuntária, surgiu diante de seus olhos, sentou na mesa de Bertaso e escreveu o poema em vinte minutos. Depois, entregou a folha para o editor, e disse, lacônico: “acrescente nos originais”.

Mario Quintana

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

quinta-feira

TRISTE ENCANTO


Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
--
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus...o frio que a pobrezinha sente!
--
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
--
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
--


QUINTANA, Mario, 1906-1994
A rua dos cataventos / Mario Quintana – 2ªed –
São Paulo: Globo, 2005.- (Coleção Mario Quintana)

MENSAGEM

O DESPERTADOR


O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo.
O Tempo não pode viver sem nós,
para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente
como um velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós é que vamos empurrando, dia-a-dia,sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.


Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho...Mas que raiva impotente dá no Velho
quando encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas
sua cadeira de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...

QUINTANA,M. Antologia Poética.
Rio de janeiro: Ediouro, 1997.5ªEd.Pág.83

terça-feira

O VELHO DO ESPELHO


Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus...Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"O que fizeste de mim?!"
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

Mario Quintana

segunda-feira

O Habito de Fumar


" Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas. "

(Foto: Dulce Helfer)

O Hábito de Fumar


" Às vezes, durante uma crise, penso que vou morrer. Olho pra minhas mãos e digo: nunca mais verei estas mãos. " (queixando-se da falta de ar decorrente do hábito de fumar desde os 14 anos)

Ceu de Porto Alegre


" Ó céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o Céu?"

Um Pouco de Mario


Na redação, tinha por ofício uma coluna, que ele entregava sempre na hora de baixar o jornal, nunca antes. Apesar de poeta, Quintana não podia fugir às contingências da lide de jornal, com hora para entregar as provas dos textos. Como entregava tudo sempre na última hora, Mário batizou sua coluna de Caderno H. Sempre que alguém perguntava sobre o porquê do nome, ele explicava que entregava a coluna sempre “na hora agá”. Passava as tardes enfurnado na redação. Era raro o momento em que ele não era importunado por visitantes, curiosos, políticos ou até mesmo jovens poetas, que iam sempre lhe pedir conselhos. Um de seus colegas do tempo do Correio do Povo, Jayme Copstein, trabalhava a uma mesa de Mário, que sempre recebia gente puxando conversa ou pedindo coisas. Com o tempo, Copstein percebeu que, sempre que a conversa ao lado acabava, o interlocutor de Quintana olhava para Jayme de cara feia, e ia embora. No começo não achou nada, mas, com o tempo, começou a ficar intrigado. Um dia, resolveu perguntar a Mário por que todo mundo que ia pedir alguma coisa ao poeta parecia brabo com ele, que não tinha nada a ver com a história:
— É que eu sempre digo que tu não deixas — explicou Quintana, sério.

A verdadeira arte de viajar


A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Mario Quintana em "A cor do invisível"
EM “Estou Sentado Sobre Minha Mala” vemos uma profunda desilusão e angústia do poeta diante do destino humano: “Se em toda a parte é sempre o Fim do Mundo/Pra que partir?”Observamos também que para ele tudo na vida dá no mesmo, a inutilidade da luta , mas essa luta, o por que dessa luta, a que os homens estão empenhados não deixa de ser uma coisa misteriosa: “Quanto tempo meus Deus, malbaratado? Em tanta inútil, misteriosa escalada!”.

ESTOU SENTADO SOBRE MINHA MALA


Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado...
Quanto tempo meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!

Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas...E afinal sem norte,
Como o velho Simbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte...

Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda a parte é sempre o Fim do Mundo

Pra que partir? Sempre se chega, enfim...
Pra que seguir empós das alvoradas
Se por si mesmas elas vêm a mim?

(da obra A Rua Dos Cataventos)

domingo



EU ESCREVI UM POEMA TRISTE

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mario Quintana
A Cor do Invisível