CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

sexta-feira

De: A RUA DOS CATAVENTOS - MARIO QUINTANA


XXX

Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio...
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram...esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então.
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
“Como é possível sem doutrinação?1”

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
“Olha! É o Idiota desta Aldeia!” dizem...

in: A Rua dos Cataventos

terça-feira

A PORTA GIRATÓRIA DE MARIO QUINTANA


PORTA GIRATÓRIA, 1988 é uma seleção de crônicas – como o próprio autor designou os textos alí reunidos – antes publicados no jornal Correio do Povo, Porto Alegre. [...] Tais crônicas, ligadas ao tempo, expressam perfeitamente a origem do gênero. Na expressão “porta giratória” está inclusa também a noção de movimento, de voltas rápidas, de giros bruscos que apontam a idéia de variedade.
[...] Igualmente alí Quintana utilizara textos antes editados no jornal.
Esse procedimento, característico do autor, identifica sua atuação como poeta e jornalista. Habituado à escrita rápida, captando a poesia diretamente do cotidiano, ele encontra nos fatos mais simples sentidos inusitados. Seu olhar ocupado com o lado humano da realidade, extrai seu lado oculto e que não é percebido pelos demais.
(Trecho do prefácio de "Porta giratória", escrito por Tânia Franco Carvalhal que coordenava a edição das obras completas do poeta, falecida em 2006)



UMBRAL

...mas eis que havia no fundo daquele quase infindável corredor de meu sonho, uma porta com a seguinte placa: BATA SEM ENTRAR. É sempre assim, pensei, o mistério só existe do outro lado das portas. Minto. O mistério está mesmo é do lado de cá. Para que procurar o outro mundo, se o nosso já é tão incompreensível como ele?
Incompreensível mas evidente. Como qualquer milagre. Como qualquer revelação.

A VELHA SURPRESA

Quando, ao café da manhã, lemos a notícia do súbito falecimento de algum amigo ou simples conhecido, ainda sentimos aquele mesmo espanto do homem que primeiro palpou, sem nada compreender, o corpo frio do primeiro morto.
Tanto assim que logo nos escapa uma exclamação estúpida, comovente, legítima:
“Mas como! Ainda anteontem eu conversei com ele...”
Sim, a velha e eterna surpresa...
Porque mesmo depois que nada mais nos espanta neste mundo, resta-nos ainda uma aventura inédita: a morte.
Mario Quintana

sexta-feira

CAMINHO


Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem mais sabia aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!

quinta-feira

POEMA EM TRÊS MOVIMENTOS


I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
- como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.

II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu - sem saionara nem nada -
por uma porta diferente.

III

E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.

In: Esconderijos do tempo

quarta-feira

ANJO MALAQUIAS


Retirado o tema inicial do texto de tradição católica, o anjinho rechonchudo é recriado com o humor característico do poeta, com um nome comum – Malaquias – e as asas em lugar errado. Entretanto, na releitura de Mario Quintana, existe um sentido maior para esse anjo pois ele tem a pureza, a inocência e a voz dos inocentes, das crianças (anjos) e dos desamparados. Seu pranto é ouvido por seres humanos adultos que cometem faltas e ficam em situações constrangedoras ou de muita culpa pelos erros cometidos. Da grande à pequena culpa, os homens criam seus problemas e tem de solucioná-los. Chora neles o inocente anjinho, prestes a ser “devorado” e sem saída, ou será que esperam a ação e a voz de Nossa Senhora para, num milagre, salvá-los de um perigo iminente? O conto assume o pensamento humano universal, que se faz de pecados e de perdão, de dor e de esperança...


O ANJO MALAQUIAS

O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos,
com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de
aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele.
Chamava-se Malaquias – tão pequenino e reconchudo, pelado,
a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da
primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o
Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre.
Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito...
saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe
apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima,
atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a
Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados
das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre
elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos
filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no
entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho
em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como
cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase...
E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam,
no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levantar o copo ao lábio,
interrompe o gesto e empalidece... – O Anjo! O Anjo Malaquias! –
... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos
que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um
pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...


(Melhores poemas Mario Quintana, São Paulo: Global, 2003, pp. 87-88)

terça-feira

RELEITURA BÍBLICA


Os textos bíblicos compõem outra fonte para as releituras que Mario Quintana faz. Homem cristão, sem dúvida criado com fortes valores, cita passagens e personagens bíblicas, às quais faz a releitura, transformando-as com sua visão de mundo. Nesta semana vamos nos dedicar a algumas dessas releituras bíblicas.
É lírica a conceituação de poesia e lugar dos poetas no mundo criado por Deus (de Caderno H. Porto Alegre: Globo, 1973, p.53.):


VERSÍCULO INÉDITO DO GÊNESIS

“E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da Criação.”


Entretanto, na mesma obra, há o poema em prosa carregado de humor contra o ser humano em geral (op.cit.,p.53):

A GRANDE CATASTROFE

No princípio era o verbo. O verbo ser. Conjugava-se
apenas no infinito. Ser, e nada mais.
Intransitivo absoluto.
Isso foi no princípio. Depois transigiu, e muito. Em
vários modos, tempos e pessoas. Ah, nem queiras saber
o que são as pessoas: eu, tu, ele, nós, vós, eles...
Principalmente eles!
E, ante essa dispersão lamentável, essa verdadeira
Explosão do SER em seres, até hoje os anjos
ingenuamente se interrogam por que motivo as referidas pessoas
chamam isso de Criação.


O homem religioso lê a Bíblia e acredita em Deus Absoluto, no Ato da Criação. O poeta descrente acha que a “Grande Catástrofe” foi Deus ter criado os seres humanos, que se multiplicaram e tornaram-se os “Outros” (os “Eles”) e não se reconhecem como irmãos.
Nesse humor triste e descrente de seus semelhantes, o poeta qualifica como um “pecado” divino ter multiplicado tanto o homem na Terra.
(Análise extraída da Obra: Mario Quintana: Cotidiano, Lirismo e Ironia.)

segunda-feira

CAFÉ COM POESIA

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

Por: Tânia Melo
Suplemento Literário “A ILHA” Março de 2006

Caminhando distraída pela Rua da Praia, não reparei, imediatamente, na figura que, de uma forma extremamente carinhosa, olhava para mim.
Aquele rosto alegre era quase um ímã. Não pude ignorá-lo.
-Meu Deus! Não é possível! - falei, quase num grito, tamanho foi meu espanto.
Seu olhar tornou-se duro. O rosto crispado. Furioso por minha desconfiança
- Como, não é possível? Estás pondo em dúvida minha identidade?
-Não, imagine! balbuciei, entre nervosa e encantada. É que...
- ...morri? É isto?
Sorriu novamente ao sentir o quanto eu arregalava os olhos e tremia o queixo, sem controle.
-Acalma-te, moça.Vamos sentar um pouquinho. Precisas de um copo d’água.
-...com açúcar, de preferência - completei.
-Eu prefiro que seja em um lugar muito conhecido e aconchegante para mim.
Dizendo isso, ofereceu-me o braço e eu, como uma autômata, o segui.
Chegando ao Cataventos, no térreo da Casa de Cultura, lançou-me um olhar inquiridor e, ao mesmo tempo, triste.
-Me acompanhas? perguntou, parecendo temer uma resposta negativa.
Não articulei palavra. Somente acenei com a cabeça, de maneira afirmativa e consegui sorrir, muito sem graça.
Incrível o poder daquela criaturinha magra e miúda. Em poucos instantes eu me sentia completamente à vontade em sua companhia, como se fôssemos íntimos amigos que se reencontravam após uma longa e saudosa ausência.
O mais incrível foi a naturalidade com que ele entrou no bar, cumprimentou a todos e dirigiu-se a uma das mesas, onde, muito gentilmente, puxou a cadeira para que eu sentasse e tomou o seu lugar.
Assombrada, não conseguia entender como aquelas pessoas todas, ali, não demonstravam a menor surpresa diante de sua aparição. Sua presença, apesar de ser muito festejada, era tida como normal.Cliente costumeiro. Gente da casa.
Será que estava louca? Ou isto tudo era apenas um sonho?
Mas, não. Tudo era muito real.
Não precisou sequer fazer o pedido. O garçom, após nos receber, dirigiu-se ao balcão e providenciou o costumeiro cafezinho, acompanhado por deliciosos quindins e, obviamente, um cinzeiro.
-Estou de regime, disse-lhe, sorrindo.
-Hoje não estás, não.Recomeças amanhã.
-Por favor, explica-me, de verdade...
Com um gesto, interrompeu-me, dizendo: “Venho do fundo das Eras. Quando o mundo mal nascia... Sou tão amigo e tão novo, como a luz de cada dia!”
Não havia mais espaço para dúvidas. Eu estava sentada, tomando o famoso café com quindins, e conversando animadamente com o meu adorado Quintana.
-Meu Deus! Quanta falta nos fazes, meu amigo.
-Não. Cumpri a minha etapa, falava, enquanto acendia um cigarro.
Perguntei-me, íntima e silenciosamente, o que teria feito para merecer tal privilégio, tamanha alegria?
Adivinhou meus pensamentos.
-Não te questiones quanto a isso. Eu, simplesmente, não gosto de tomar café sozinho. Já tive muitos momentos de solidão, em vida. Agora, desfruto sempre de alguma boa companhia, quando venho até aqui.
Um gole de café, um pedaço de quindim... e mais um cigarro.
Aproveitei, então, para agradecer-lhe por tudo o quanto deixara de bom para esse mundo.
-Tuas poesias encantam a milhares de pessoas.São sementes que brotam e dão frutos sem parar.És amado e cons...
Novamente o gesto com a mão, fazendo -me calar.
-Teu café vai esfriar. E, se não gostas de quindim, não faças cerimônia. Pede o que mais te agradar. Além disso, meu tempo é curto. Hoje é quarta-feira, não? Tenho apenas mais uns dez minutos.
Entre quindins, cafés e cigarros, os instantes voaram e, com tristeza vi que levantava e achegava-se a mim, beijando, carinhosamente o meu rosto, em sua despedida.
Não pude conter as lágrimas.
Foi se retirando, sorrindo, acenando e, apesar da distância, ainda pude ouvi-lo: “As mãos que dizem adeus, são pássaros que vão morrendo lentamente...”

sexta-feira

PRIMEIRO POEMA DE ABRIL

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES


VEM VINDO O ABRIL TÃO BELO EM SUA BARCA DE OURO!
UM COPO DE CRISTAL INVENTA AS CORES TODAS DO ARCO-ÍRIS.
EU PROCURO
AS MOEDINHAS DE LUZ PERDIDAS NA GRAMA DOS TEUS
OLHOS VERDES,
E ATÉ ONDE, ME DIZ,
ATÉ ONDE IRÁ DAR ESSA VEIAZINHA AQUI?
(ABRIL É BOM PARA ESTUDAR CORPOGRAFIA!)

Mario Quintana

quinta-feira

A VIAGEM


Quando passei o Cabo das Tormentas
As sereias seguiram-me... E o seu canto
Nunca fora, meu Deus, tão aliciante...
Até acreditei, num breve instante,
Que por algum milagre a nau transviada
Viesse acaso sonâmbula voltando
Às praias luminosas da alvorada...
Mas, ai de mim, esses enganos são
Pesadelos de luz! Antes o escuro, o sossegado
Sono... Mas uma voz: - Que dizes, nosso amor?
Ainda que nos escutes a teu lado,
Nós cantamos sempre no Futuro!

quarta-feira

Nunca Ninguém Sabe

FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

Nunca ninguém sabe se estou louco para
rir ou para chorar.
Por isso o meu verso tem
Esse quase imperceptível tremor...
A vida é louca, o mundo é triste:
Vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor...

Preparativos de viagem (1989)

terça-feira

O MORTO

Morto - Portinari 1958

"Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
Quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco
Já eram horas de dormir de novo.
Mario Quintana
FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

sábado

Um dia acordarás



Um dia acordarás num quarto novo
Sem saber como foste para lá
E as vestes que acharás ao pé do leito
De tão estranhas te farão pasmar,
A janela abrirás, devagarinho:
Fará nevoeiro e tu nada verás...
Hás de tocar, a medo, a campainha
E, silenciosa, a porta se abrirá.


E um ser, que nunca viste, em um sorriso
Triste, te abraçará com seu maior carinho
E há de dizer-te para o teu assombro:


- Não te assustes de mim, que sofro há tanto!
Quero chorar - apenas - no teu ombro
E devorar teus olhos, meu amor...
Mario Quintana

sexta-feira

O CAIS


Naquele nevoeiro
Profundo profundo...
Amigo ou amiga,
Quem é que me espera?

Quem é que me espera
Que ainda me ama,
Parado na beira
Do cais do Outro Mundo?

Amigo ou amiga
Que olhe tão fundo
Tão fundo nos meus olhos
E nada me diga...

Que sorriso esquecido...
Ou radiante face
Puro sorriso
De algum novo amor?!

In: Aprendiz de Feiticeiro

terça-feira

EXTRA TERRENA

Cecília Meirelles

"Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre."
Cecília Meireles


Na semana de aniversário de Quintana postei um poema a ele dedicado por Cecilia Meirelles. Hoje vamos em sentido contrário: é Quintana quem escreve a Cecília.

EXTRA-TERRENA

(Para Cecília Meirelles)

Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
Ou quem sabe a Morte nos houvera bordado
numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como
as plantas marinhas
E as nossas palavras como asas suspensas no vento...

In: Preparativos de Viagem

segunda-feira

MINHA MORTE NASCEU QUANDO EU NASCI

Lendo - Pablo Picasso

(Para Moysés Vellinho)

Minha morte nasceu quando eu nasci...
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi

Já não tem mais aquele jeito amigo
De rir que, aí de mim, também perdi
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és minha doce prometida,
Nem sei quando serão nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti...saber que tu existes!

In: A Rua dos Cataventos