CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

terça-feira


“O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente...”

Verificamos aqui o sentimento do poeta, em relação ao passado irrecuperável, revelando por vezes um sentimento melancólico, mostra-se nostálgico em relação ao tempo que não existe mais, uma vez que nega indiretamente o presente, a modernidade. (Anna Faedrich Martins)

NOTAS DA CIDADE

O mais triste da arquitetura moderna é a resistência do seu material.
Havia, não me lembro agora se no País das Maravilhas, da Alice, ou se na Cidade de Oz, uma velha que morava num sapato. E nós que moramos em caixas de sapato!
Esses tetos baixos me abafam... De modo que só resido em casas antigas. Acontece que as casas velhas têm proprietários velhos, muito velhos, aliás, e por isso mesmo muito morredores. E seus herdeiros resolvem sempre vendê-las a construtores de edifícios.
Resultado: há anos que venho me mudando: sou uma pobre vítima do surto do progresso e do clamor do público.
Em todo o caso, como vocês já devem ter reparado, é nessas épocas de mudança arquitetônica que se dá a maior instabilidade social e individual,
E quando põem abaixo, então, a velha casa em que nascemos?!
Mario Quintana

POEMA DESENHADO


POEMA DESENHADO

Para Mara Cilaine

No meio da página escrevo por acaso a palavra MENINA
e, à sua magia, um caminho abre-se
para ela andar

E como houvesse brotado a seus pés um arroio espiador,
uma ponte estendeu-se
para ela atravessar

Mas a menina
agora parou
e do meio da ponte namora encantadamente nas águas
a graça inacabada de seu pequenino rosto feito às pressas

Às pressas...
(nem tive tempo de lhe dar um nome)

A vida é assim
Meninazinha sem nome...

A vida nem da tempo para a Vida!

In: Baú de Espantos

sábado

ROCK


O rock é o desespero,
Como se eles estivessem não apenas no fim de um século
Mas no fim do mundo e, por isso,
Berram em vez de cantar,
Pulam em vez de dançar,
Estupram-se em vez de simplesmente se amarem...
E fazem de tudo, tudo,
No seu suicídio coletivo!

In: Velório Sem defunto

sexta-feira

NÃO BASTA SABER AMAR


Os textos bíblicos compõem outra fonte para as releituras que o poeta faz transformando-as com sua visão de mundo. No poema a seguir o Novo Testamento tem citação explicita, reescrita que, à sua maneira, Mario transforma no conselho dado ao jovem Milton Quintana. O velho sábio, já descrente dos homens, busca no texto bíblico as palavras que fundamentarão os sentidos de seus versos.

NÃO BASTA SABER AMAR

Neste mundo que tanto mal encerra,
Não basta saber amar
Mas também saber odiar
Não só servir a paz, mas também ir à guerra
Seguiremos assim o próprio exemplo
De Jesus que tanto amor pregou na terra...
Quando Ele,
Num ímpeto de cólera,
A relhaço expulsou os vendilhões do templo.

Mario Quintana

quinta-feira

INTERMEZZO


O poeta fala em eternidade, isto é, refere-se ao tempo eterno na perspectiva da arte, pois a bolha é o espaço da criação, intocável e perene na medida em que a vida se eterniza na arte.

Intermezzo
de Mario Quintana

Nem tudo pode estar sumido
ou consumido…
Deve – forçosamente – a qualquer instante
formar-se, pobre amigo, uma bolha de tempo nessa Eternidade…
e onde
- o mesmo barman no mesmo balcão,
por trás a esplêndida biblioteca de garrafas,
fonte de nossa colorida erudição -
haveremos de continuar aquela nossa velha discussão
sobre tudo e nada
até
que, fartos de tudo e nada,
desta e da outra vida,
a rir como uns perdidos,
a chorar como uns danados,
beberemos os dois nos crânios um do outro…
até o teto desabar!
(Perdão! até a bolha rebentar…)

in: Esconderijos do Tempo

quarta-feira

5005618912


5005618912

Não existe no mundo tanta gente como o número de ordem que me deram no cartão de identidade, que não vou te mostrar porque não poderias lê-lo antes de o ter dividido da direita para a esquerda em grupos de três, para depois o pronunciares cuidadosamente da esquerda para a direita. Sei que o mesmo acontece contigo, mas que te importa, que nos importa isso – antes que um dia nos identifiquem a ferro em brasa, como fazem os estancieiros com o seu gado amado?

Esse número, de quintilhões ou quatrilhões, não me lembro mais, me faz recordar que venho desde o princípio do mundo, lá do fundo das cavernas, depois de pintar nas suas paredes, com uma habilidade hoje perdida, aqueles animais que vejo nos álbuns, milagre de movimento e síntese. Agora sou analítico, expresso-me em símbolos abstratos e preciso da colaboração do leitor para que ele “veja” as minhas imagens escritas.

Olho ao redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva.

...Ele está bebendo a milenar inquietação do mundo!

A Vaca e o hipógrafo

terça-feira

DEUS


” Deus não está no céu. Deus está no fundo do poço
onde o deixaram tombar.
- Caim, o que fizeste do teu Deus?
Suas unhas ensangüentadas arranham em vão as paredes escorregadias.
Deus está no inferno...
É preciso que lhe emprestemos todas as nossa forças
todo o nosso alento
para trazê-lo ao menos à face da terra.
E sentá-lo depois à nossa mesa
e dar-lhe do nosso pão e do nosso vinho.
E não deixar que de novo se perca.
Que de novo se perca... nem que seja no céu!”

"Nova Antologia Poética, 1966"

“O bicho,
Quando quer fugir dos outros,
Faz um buraco na terra.
O homem,
Para fugir de si,
Fez um buraco no céu”

Idem

segunda-feira

PARA OS AMIGOS MORTOS


PARA OS AMIGOS MORTOS

Gadeia... Pelichek... Sebastião...
Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas!
Aonde foram vocês? Onde é que estão
Aquelas nossas ideais noitadas?

Fiquei sozinho... Mas não creio, não,
Estejam nossas almas separadas!
Às vezes sinto aqui, nestas calçadas,
O passo amigo de vocês... E então

Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta...
E no meu romantismo vagabundo

Eu sei que nestes céus de Porto Alegre
É para nós que inda São Pedro pinta
Os mais belos crepúsculos do mundo!...

in: A Rua dos Cataventos

sexta-feira

DEIXA-ME SEGUIR PARA O MAR


Tenta esquecer-me...Ser lembrado é como
evocar-se um fantasma...Deixa-me ser
o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo...

Em vão em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se...

Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir...é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...

toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!

In: Baú de Espantos

O ESPECTADOR


O ESPECTADOR

Olhar a televisão
Sem prestar atenção,
Ver apenas figuras a moverem-se na tela
E só assim talvez terei alguma compreensão
Da nossa vida e do sentido dela...

O VISITANTE

Aquele morto voltou para assistir à primeira reunião familiar
E retirou-se agradecido
Ao ver que seus saudosos parentes estavam falando em outras coisas...

In: Velório Sem defunto
Sergio Faraco com Quintana 1978

quinta-feira

ÁGUA


O ultimo livro de Mario Quintana, “Água” trata-se de uma edição trilingue (Português, Inglês e Espanhol) escrito em 1994 e publicado em 2001 pela Editora Artes e Ofícios de Porto Alegre

FORTALEZAS DA ILHA DE SANTA CATARINA
Os velhos marinheiros meus avós...
Para eles ainda não terminou
a espantosa Era dos Descobrimentos.
Das construções com longos
e intermináveis corredores
que a lua vinha às vezes assombrar.
Nas casas novas
não há lugar para os nossos fantasmas!
E se acabarem as construções antigas,
a nossa história vai ficar sem teto!...

PONTE DE BLUMENAU
Entre a minha terra e a tua
Há um ponte de aço.
Desafiando o rio,
Desafiando o vento,
Desafiando a chuva,
Desafiando tudo!
Quem é que me espera,
Que ainda me ama,
Lá do outro lado
Da ponte de aço?
Ponte Metálica-Blumenau SC

quarta-feira

POEMA VII


Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
“Era uma vez... Um dia... Eis se não quando...”
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe...(É o rei que anda buscando
O pezinho da gata borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro ainda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um’outra história principia,
Para embalar um coração dorido
Que está pensando sempre em outra cousa...

in: A Rua dos Cataventos

terça-feira

Quintanianas


NO PRINCÍPIO

No início era a poesia... No cérebro do homem só havia imagens... Depois, vieram os pensamentos... E, por fim a filosofia, que é, em última análise, a triste arte de ficar do lado de fora das coisas.

OS IMAGISTAS

Quando o homem desaparecer, que será das coisas? Morrerão da mesmice de ser. De serem apenas aquele poste, ali na esquina, a fonte sorrateira, a bela tabuleta inutilmente colorida, os pacientes relógios sobreviventes. Morrerão da mesmice de serem e não mais parecerem... Quando o homem desaparecer, que será das coisas, que será de Deus?
Mario Quintana

segunda-feira

A RUA


A rua é um rio de passos e de vozes,
Um rio terrível que me vai levando
Mas estou só, como se está na infância...
Ou quando a morte vai se aproximando

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um vôo de andorinha na distância
É a minha saudade que eu te mando.

Mas tudo, nesse tumultuoso rio,
Não fica nunca ao fundo da lembrança
Como no seio azul de uma redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
Onde uma flor, às vezes fica presa
E um claro riso sobre as águas dança!
In: Baú de Espantos

domingo

O MUNDO DE DEUS


Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no fim das contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.
Porque, se Deus é paz e paz é silêncio, afinal, deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.
E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus sem os homens”.
Caderno H - 1973

sábado

PARA OS NAMORADOS



Bilhete com endereço

Mas onde já se ouviu falar
Num amor a distância
Num (tele-amor)?!
Num amor de longe...
Eu sonho é um amor pertinho
Um amor juntinho...
E. depois,
Esse calor humano é uma coisa
Que todos – até os executivos – tem.
É algo que acaba se perdendo no ar,
No vento
No frio que agora faz...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti
É o teu calor animal!...

Mario Quintana

sexta-feira

SONETO II de A RUA DOS CATAVENTOS

No soneto II de A Rua dos Cataventos, percebemos a maneira afetiva e carinhosa com que Quintana se refere à cidade pequena.. Ele dialoga com a cidade tranqüila, deixando pistas de que essa é a cidade que não existe mais, que agora é fruto de sua memória. Aqui ainda é a cidade dos lampiões e dos jardins, cidade do sossego. (Anna Faedrich Martins)


II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada.
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme ruazinha... não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

No poema abaixo, do livro “CANÇÕES”, 1946, o poeta refere-se a essa ruazinha desconhecida e perdida como o seu porto seguro; é o local do seu futuro refúgio, “quando tudo estiver perdido”(Idem)


CANÇÃO DA RUAZINHA DESCONHECIDA

Ruazinha que eu conheço apenas
Da esquina onde ela principia...

Ruazinha perdida, perdida...
Ruazinha onde Maria fia...

Ruazinha em que eu penso às vezes
Como quem pensa numa outra vida...

E para onde hei de mudar-me, um dia,
Quando tudo estiver perdido...

Ruazinha da quieta vida...
Tristonha...tristonha...

Ruazinha onde Maria fia
e onde Maria na janela, sonha...

quinta-feira

UM POUCO DE MARIO 6


Este Blog nunca postou uma biografia de Mario Quintana, talvez porque sua biografia está espalhada em dezenas de sites e blogs na Internet. Resolvi ir postando dados da vida de Quintana de forma diferente. Ao longo do Blog postei inúmeros textos que contam partes e curiosidades da vida do poeta.Estes textos vem sempre com o título “UM POUCO DE MARIO” Aqui apresento uma parte de uma entrevista dada por ele à Ivete Brandalise, entrevistadora da Rádio Cultura FM no dia 2 de Janeiro de 1990.

Ivete Brandalise

Ivete – Que músicas fazem a tua cabeça?
Quintana – A 4ª. Sinfonia de Maler, pois ela é uma música angustiada e eu como todos neste fim-de-século estamos angustiados. Gosto também de Cântigos Peregrinos de Wagner e a Canção dos Barqueiros do Wolga.

Ivete – Tu falaste na angústia de Maler. Tu achas que a angustia te ajuda a criar?
Quintana – A angustia ajuda a criar porque um poema sempre se faz num estado de inquietação, que não deixa de ser angústia. Embora não seja uma angústia de desespero, mas uma angústia que traz esperança.

Ivete – Em termos de música, o que mais te impressiona na música?
Quintana – É a força.

Ivete – E a música que tu fazes com as palavras? Como tu classificas?
Quintana – O pessoal sempre me tem como um poeta suave. Cheguei a ser chamado de anjo poeta. Eu tenho todos os sons, desde as coisas mais amorosas, as mais suaves até as coisas mais violentas. Eu tenho um poema, por exemplo, que começa assim:
“Estou triste. Não dessa tristeza envergonhada dos que ao invés de se matarem, fazem poemas. Estou triste porque vocês são burros e feios e não morrem nunca”.

Ivete – E aquele garoto que morava em Alegrete e ajudava a aviar receitas médicas. Aquele garoto gostava de música?
Quintana – Sim, gostava de música. Não havia TV, só radio. Eu fui para Alegrete porque fui reprovado. E para não repetir o ano, o meu pai (Celso) me disse: - já que você não quer se formar, eu pra vagabundo não te quero. Vem trabalhar aqui comigo na farmácia”.

Ivete – Tu fazias poesia nesta época?
Quintana – Desde que eu me entendia por gente, eu começava a escrever umas coisas que achava ser poesia. O primeiro poema é sempre o mais belo do mundo, porque a sua descoberta no mundo da poesia é o seu encontro com a poesia.

Ivete – E estes primeiros poemas estão guardados, foram editados ou estão perdidos?
Quintana – Não, estão perdidos, espalhados.

Ivete – Quando é que deixaste o balcão da farmácia e vieste para Porto Alegre?
Quintana – Depois que meu pai faleceu em 1928. Comecei a trabalhar no (Jornal) Estado de Rio Grande Do Sul, dirigido por Raul Pilla.

Ivete – Foi fácil o começo?
Quintana – Como o que eu gostava de fazer era escrever, não foi difícil. Minha profissão é jornalista. Poeta é o estado, assim como o estado de graça ou o estado de coma, conforme o poeta.

Ivete – Onde é que surgia a poesia?
Quintana – Quando a gente escreve um poema, a gente fica dentro de uma redoma de silêncio, por mais barulho que haja em torno.

Ivete – E o sucesso com as mulheres?
Quintana – Ora, era uma coisa natural. As minhas namoradas sempre foram formidáveis. A bem amada era um pretexto para a poesia.

Ivete – Mário, tu costumas escrever ouvindo música ou em silêncio?
Quintana – Em qualquer parte. Não paro nunca de escrever. Preparo o diário poético. Já estou fazendo o diário poético de 1991.

Ivete – Que frase tem o diário poético de 1990 para o primeiro de janeiro?
Quintana – “O dia da mais antiga esperança do mundo”.

Ivete – Você teve contato muito estreito com grandes poetas brasileiros, Bandeira, Vinícius, Drummond. Que poeta te parece mais representativo da poesia brasileira?
Quintana – Eu acho que a Cecília Meireles é a maior poeta brasileira da primeira metade do século, porque para nós, para disfarçar um pudor de sentimentalismo, a gente se refugia no humor, e ela nunca. Ela sempre foi poeta puro.

Ivete – O que te encanta no ser humano?
Quintana – É o simples fato de ser humano.

Ivete – E o que te desencanta no ser humano?
Quintana – Quando ele é desumano (risos).

Ivete – Tu achas que neste momento aqui no Brasil estamos fazendo poesia? Boa ou má poesia?
Quintana – Acho que estão fazendo uma coisa que não tem nada a ver com poesia. Estão fazendo prosa mal escrita.

Ivete – Mario, quando começamos este programa, tu disseste que não gostava de recordar. Por que?
Quintana – Porque dá saudade de mim mesmo.

quarta-feira

Chico Stockinger


Dia 12 de abril p.p. faleceu o escultor e e gravurista Francisco Stockinger autor do monumento a Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana na Praça da Alfândega em Porto Alegre, RS

De: A RUA DOS CATAVENTOS


Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela simplesmente...
Eu sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente.

Nem é deste planeta ...Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu anjo da guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago país da Trebionza...

Entre os loucos, os mortos e as crianças,
É lá que eu canto numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...

In; A Rua Dos Cataventos

terça-feira

LUNAR


As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...

E que importa se um dos nossos artefactos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus botoques:
a própria lua tem sua usina de luar...

E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial como esta esferográfica.

Não tanto... Alguém me há de ler com um meio sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo...

in: Apontamentos de História Sobrenatural

segunda-feira

DO CADERNO H


O DIABO E A CRIANÇA

Um dia o Diabo viu uma criança fazendo com o dedo um buraco na areia e perguntou-lhe que diabo de coisa estaria fazendo.
- Ué! Não vês? Estou fazendo com o dedo um buraco na areia! – espantou-se a criança.
Pobre Diabo! O seu mal é que ele jamais compreenderá que uma coisa possa ser feita sem segundas intenções.

O NARIZ COLETIVO

Nada mais deprimente do que esses retratos de família em que todos têm o mesmo nariz (será postiço) e onde todas aquelas caras parece que estão pensando: “Mas como somos iguais, como somos animais!”
Não há de ser nada. Há um anonimato ainda mais sutil. E mais grave. Quando folheamos revistas antigas, espanta-nos que todas aquelas pessoas que parecem nas fotografias tivessem a mesma expressão. Vai ver que todos pensavam igual! Era a cara da época. Era a cara de fora. Ninguém tinha a cara de dentro. “Também seremos assim?” – indagas agora na maior frustração. Pergunta supérflua. Devias inquirir: “Serei assim?” E trata, antes, de substituir a tua cara coletiva por uma fisionomia própria. Depois conversaremos.
Há outras conotações, como hoje se diz. Por exemplo: nos Estados totalitários todas as pessoas tema a mesma cara. A grande manada. O rebanho único. E se por acaso aparece um bicho diferente, a solução é simples: caça-se.

sábado

A ARVORE DOS POEMAS



Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Seus galhos se contorcem todos como mãos de
enterrados vivos.
Os galhos desnudos, ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus, essa lenta procissão de almas
retirantes...
De vez em quando uma tomba, exausta a beira do caminho,
Porque ninguém lhe chega ao lábio o frescor de
cântaro, a doçura de fruto que poderia haver num
poema.
Maldita a geração sem poetas que deixa as almas
Seguirem, seguirem como animais em estútida
Migração!
Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Qual será o destino das almas!
in: Bau de Espantos

sexta-feira

PROJETO DE PREFÁCIO


Sábias agudezas...refinamentos...
-não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
Como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar
Um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim
Porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba
Preparar-te para a morte
Não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!

quinta-feira

EPÍLOGO


Em épocas de tragédia, como esta que estamos vivenciando da queda do Airbus da Air France, muitos se perguntam “por que?”. De milhares de vôos feitos na mesma rota, pelos mesmos aviões durante anos, de repente uma tragédia acontece.
Quintana também se perguntava “por que?” em Epílogo:

"Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada agüenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade."
In: Sapato Florido

MAGIAS

Conheço uma cidade azul.
Conheço uma cidade cor de ferrugem.
Na primeira, há helicópteros pairando...
Na segunda, espiam de seus esconderijos os olhos das
ratazanas
No entanto
É a mesma cidade
E,
Onde a gente estiver,
Será sempre uma alma extraviada em labirintos escusos
Ou, então,
Uma alma perdida de amor...
Sim! Por ser habitado por almas
É que este nosso mundo é um mundo mágico...
Onde cada coisa – a cada passo que se der
Vai mudando de aspecto...
De forma...
De cor...
Vai mudando de alma!

In: Baú de Espantos

quarta-feira

VIVER


Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforecentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar...ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar,
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!

In: Baú de Espantos

Alegria de Viver
Grafite Alemão
Flavio Takai

segunda-feira

TEMPESTADE NOTURNA


Tive a oportunidade, nos quase vinte anos em que trabalhei no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, de conviver com o poeta Mario Quintana. Nossas mesas de trabalho, na redação ficavam vis-à-vis. Chegando à tarde, depois de tomar um cafezinho no bar do jornal, o poeta punha-se a ler a sua própria poesia. Invariavelmente. Lá pelo final da tarde, pegava do lápis (asa vezes da caneta esferográfica) e começava a rabiscar naquele antigo papel de jornal que nos era oferecido pela redação, antigas resmas de composição, então já reduzidas a toalhas para secar as mãos. Enfim, o poeta, ao final da jornada, às vezes já no início da noite, usava sua imensa máquina de escrever Olivetti 88 e punha-se a digitar (literalmente, porque Mario escrevia com não mais do que quatro dedos, dois de cada mão), com vagar, e eu diria, com método, o novo poema, qual fênix, renascido de outros tantos que o mesmo poeta escrevera e ali deglutira, antropofagicamente. É como se Mario Quintana conversasse permanentemente consigo mesmo, numa espécie de solilóquio continuado...
Antonio Hohlfeldt
“O encontro dos vários temas na poesia de Quintana”, in Caderno de Sábado, Porto Alegre, Caderno do Povo, 10.11.1979

TEMPESTADE NOTURNA

Noite alta,
na soçobrante Nau exposta aos quatro ventos,
em pleno céu sulcado de relâmpagos,
os marinheiros mortos trovejam palavrões.

Ó velhos marinheiros meus avós...
Para eles ainda não terminou a espantosa Era dos
Descobrimentos!
Santa Bárbara
e São Jerônimo,
transidos de divino amor,
escutam suas pragas como orações.

Quando eu acordar amanhã, livre e liberto como uma asa
vou rezar a São Jerônimo
vou rezar a Santa Bárbara
por este nosso fim de século pobre Nau perdida no
nevoeiro
que em vão busca o rumo

das eternas, das misteriosas Américas ainda por descobrir
Mario Quintana in: Bau de Espantos

Memoria de Paulo Corrêa Lopes

O poema é uma homenagem ao poeta Paulo Correa Lopes. Quintana admirava sua obra decerto. Uma pequena amostra da obra do homenageado:
Homens Humildes
Ninguém sabe a história dos homens humildes
Que adormeceram para sempre.
Ninguém sabe as horas boas ou más
Que viveram na terra.
Ninguém sabe o impossível que sonharam
Paulo Correa Lopes in: Obra Poética

MEMORIA DE PAULO CORREA LOPES

Tua poesia não leva à loucura, poeta
Porque sempre voltaste com uma voz mais pura,
Não a voz bramidora e cava dos profetas
Mas um fluir de pura fonte oculta
Na mata...E é como se ir andando descalço sobre a relva
E descobrir de súbito o Trevo de Quatro Folhas
De que nem se sabia que andava à procura
E fica-se um tempo olhando, olhando, sem colhê-lo...
E a tua voz é mansa como quem acaricia o pelo
De um animal doente...Mas a verdade é que
Tua poesia faz bem a gente...
Por que infernos andou a tua pobre alma perdida
Para falar de Deus tão simplesmente
Que até deixaste uma esperança em nossa vida?
Mario Quintana