CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

segunda-feira

TEMPESTADE NOTURNA


Tive a oportunidade, nos quase vinte anos em que trabalhei no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, de conviver com o poeta Mario Quintana. Nossas mesas de trabalho, na redação ficavam vis-à-vis. Chegando à tarde, depois de tomar um cafezinho no bar do jornal, o poeta punha-se a ler a sua própria poesia. Invariavelmente. Lá pelo final da tarde, pegava do lápis (asa vezes da caneta esferográfica) e começava a rabiscar naquele antigo papel de jornal que nos era oferecido pela redação, antigas resmas de composição, então já reduzidas a toalhas para secar as mãos. Enfim, o poeta, ao final da jornada, às vezes já no início da noite, usava sua imensa máquina de escrever Olivetti 88 e punha-se a digitar (literalmente, porque Mario escrevia com não mais do que quatro dedos, dois de cada mão), com vagar, e eu diria, com método, o novo poema, qual fênix, renascido de outros tantos que o mesmo poeta escrevera e ali deglutira, antropofagicamente. É como se Mario Quintana conversasse permanentemente consigo mesmo, numa espécie de solilóquio continuado...
Antonio Hohlfeldt
“O encontro dos vários temas na poesia de Quintana”, in Caderno de Sábado, Porto Alegre, Caderno do Povo, 10.11.1979

TEMPESTADE NOTURNA

Noite alta,
na soçobrante Nau exposta aos quatro ventos,
em pleno céu sulcado de relâmpagos,
os marinheiros mortos trovejam palavrões.

Ó velhos marinheiros meus avós...
Para eles ainda não terminou a espantosa Era dos
Descobrimentos!
Santa Bárbara
e São Jerônimo,
transidos de divino amor,
escutam suas pragas como orações.

Quando eu acordar amanhã, livre e liberto como uma asa
vou rezar a São Jerônimo
vou rezar a Santa Bárbara
por este nosso fim de século pobre Nau perdida no
nevoeiro
que em vão busca o rumo

das eternas, das misteriosas Américas ainda por descobrir
Mario Quintana in: Bau de Espantos

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