CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

sexta-feira

DE UM DIÁRIO ÍNTIMO DO SÉCULO XXX

FOTO LIANE NEVES


As mulatas representam aqui o que há de mais brasileiro, a fascinante micigenação das cores brancas e pretas..."fascina-me o contraste absoluto entre ambas"... As mulheres azul celeste, certamente, devem ser chatas demais para um poeta que se diz fascinado pelo contraste. Por isso este texto retirado de "De um Diário Íntimo do Século XXX" é tão fascinante, como o contraste entre as cores branca e negra.


DE UM DIÁRIO ÍNTIMO DO SÉCULO XXX

Juro que não tenho o mínimo preconceito de cor. O que há comigo é que acho umas chatas as mulheres azul-celeste. Piores até que as frutacores.Por que não experimentam o cultivo de mulheres brancas e pretas, que dizem ter sido as peles primitivas nos tempos bárbaros.
Fascina-me o contraste absoluto entre ambas. E se tivesse que escolher entre uma branca e uma preta, não sei o que faria...
Abri-me a esse respeito com meu velho e sábio amigo dr Gregorovirus. Ele pôs-se a discorrer sobre soluções dialéticas, sobre certa mescla de café com leite... Não sei o que é dialética, não sei o que é café, não sei o que é leite. Por que raios esses técnicos não se expressam em língua de gente?
Quando eu ia pedir-lhe mais explicações, ele, com um leve dar de ombros, ergueu-se nos ares, e quando já estava a uns dois metros de altura gritou-me:
- Vou tratar do caso, vou tratar (ele tem a mania de repetir as palavras) A sua única salvação meu pobre amigo é a mulata. A mulata!
Fiquei nas mesmas.
Mario Quintana in: Da Preguiça como Método de Trabalho.
Mulata na janela - Di Cavalcanti

segunda-feira

SONETO PÓSTUMO

Nada permanece igual no tempo, a não ser o próprio tempo. Quintana percebe isso como ninguém. Um velho amor valeu em seu próprio tempo.  Drummond diria: “Mudam-se os tempos/ mudam-se as vontades/ Muda-se o ser”  O tempo  é  implacável  e não tem piedade de nós, pobres e efêmeros humanos. Cecília Meirelles diria: “Talvez pensem que o tempo volta/ E que vens, se o tempo voltar”.  Neste poema Quintana afirma que o tempo não volta e nem o que éramos ou as sensações e sentimentos que sentíamos. “No fim, tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não consegue levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro, o cheiro que tinha um dia o próprio vento...” Ou seja, o tempo como o vento passa...e deixa somente as recordações.

SONETO PÓSTUMO

- Boa Tarde... - Boa Tarde! - E a doce amiga
E eu de novo, lado a lado vamos!
Mas há um não sei quê, que nos intriga:
Parece que um ao outro procuramos...


E, por piedade ou gratidão, tentamos
Representar de novo a história antiga.
Mas vem-me a idéia... nem sei como a diga...
Que fomos outros que nos encontramos!


Não há remédio: é separar-nos pois.
E as nossas mãos amigas se estenderam:
-Até breve!  - Até breve! - E, com espanto


Ficamos a pensar nos outros dois.
Aqueles dois que a tanto já morreram...
E que, um dia se quiseram tanto!

Junho, 1952
Mario Quintana in: Baú de Espantos

quarta-feira

QUEM AMA INVENTA


FOTO DE DANIEL DE ANDRADE SIMÕES


Cecília Meirelles poetizou que “a vida só é possível reinventada” reafirmando o poder recriador da poesia. Mario Quintana complementou dizendo “quem ama inventa as coisas a que ama”. Cecília e Mario, conjugando-se parecem estar a nos dizer: “Se nos amamos, reinventamos a nós mesmos!”


QUEM AMA INVENTA

Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria.
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

Mario Quintana in: A Cor do Invisível


REINVENÇÃO

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meirelles in: Mar absoluto e outros poemas, 1945.


CECÍLIA MEIRELLES
 
 
 


QUEM AMA

Camões escreveu:"Quem ama inventa as penas em que vive." "Quem ama inventa as coisas a que ama," acrescentaria eu se a a tanto me atrevesse.
Mario Quintana in: Da Preguiça como Método de Trabalho