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terça-feira

AMOR A PORTO ALEGRE

Mario Quintana nunca viveu um casamento tradicional. Mas casou-se, por longos 75 anos, com aquela que deu guarida à maior parte de tudo o que lhe foi inspiração. Uma jovem experiente, que já contava com 147 anos de vida quando do encontro com o poeta. Uma jovem feliz, pois assim anuncia-se através de nome próprio, que leva a palavra "alegre" acompanhada de outra que descreve sua principal função na vida de Quintana: um porto.

A capital do Rio Grande do Sul conheceu seu mais famoso poeta em 1919. Quintana tinha apenas 13 anos quando ingressou no Colégio Militar de Porto Alegre. O objetivo era realizar o sonho do pai, ter um filho doutor. Mas foi lá dentro que o anseio paterno começou a sofrer um desvio sem volta. No jornalzinho da instituição Quintana conheceu a escrita, apaixonando-se perdidamente. As palavras e a possibilidade de trabalhar com elas arrebatou o filho do alegretense Celso de Oliveira Quintana.

E foi sem volta. Estar em Porto Alegre encaminhou Quintana para o destino que ele resolveu traçar para si, o da poesia. Para isso, contou com a cumplicidade da cidade, que o recebeu inicialmente em pensões, várias delas espalhadas pelo centro da cidade e cercanias. Depois vieram os hotéis. Sendo o principal deles o Majestic, onde viveu por 13 anos e que mais tarde viria a se tornar a Casa de Cultura Mario Quintana. Nunca montou casa própria, nunca fez de um determinado endereço algo de somente seu, pessoal e intransferível. Era andarilho de ruas e de moradas. Variava pousos, morador e visitante ao mesmo tempo. Talvez uma metáfora sobre a sua presença nesse mundo. Afinal, jurava Érico Veríssimo, que o poeta era anjo que nos visitava, não era desse planeta.

Pois sim. Quintana era e não era de Porto Alegre. Até porque, nascera em Alegrete, coisa de 500km até a capital gaúcha. Mas a sua parte que era da cidade, cumpria seu papel com maestria. "Andarilhava" por aí com freqüência. Como diria o amigo Armindo Trevisan, era caminhante compulsivo. Durante anos, cumprira um trajeto curioso. Pegava um bonde, descia no fim da linha e voltava a pé, rua por rua do centro da cidade. Sem pressa, pois não abria mão de visitar os diversos botecos do caminho. O preferido era o Bar Leão. Coisas do tempo em que Quintana ainda bebia.

Para alguns hábitos, cumpria fidelidade. O mesmo barbeiro por mais de 50 anos, o costume de jogar na loteria, a mania de tomar café e ler jornal sempre nos mesmos lugares. E essa prática de observar a chegada de cada uma das estações, bem precisas no Rio Grande do Sul. Para a chegada de um outono, escreveu: "E agora esse cartaz na alma da gente: ADIADOS OS SUICÍDIOS... Simplesmente. Porque é abril em Porto Alegre... E pronto!"

No início, Porto Alegre era simples para o poeta que em 1967 recebeu o título de Cidadão Honorário: "Uma cidade pequena onde todos ou quase todos se conheciam, e as diversões eram os bares, os cafés, as galerias de arte e o Theatro São Pedro". Quintana acabou acompanhando de perto todas as transformações da cidade no século passado. De cidade pequena para metrópole. De simples, para complexa.

Ele assistia a tudo das janelas que teve e nunca a perplexidade tomou o lugar da paixão. Até porque, o poeta esforçava-se para valorizar o passado que pulsava (e pulsa) por Porto Alegre. Em especial no centro da cidade, bairro que adotou como a extensão de suas moradas, os quartos de hotel. Lugares como a Praça da Alfândega eram uma espécie de "varanda da casa" para Quintana. Naqueles bancos, ele passava tardes inteiras conversando com a atriz Bruna Lombardi, uma de suas musas. Por ali também participava anualmente da Feira do Livro de Porto Alegre, evento onde sempre atuava enquanto celebridade. Todos queriam ficar perto do poeta, fazer foto, conseguir um autógrafo.

O cara era um sucesso. Lá pela década de 80, certa vez afirmou para um jornalista que o entrevistava: "Eu tô na moda". E tava mesmo. Seu espetáculo surgia nos seus escritos; seu palco nas ruas do centro da cidade. A este último dedicou acima de tudo um olhar sempre nostálgico. Vociferava contra os arranha-céus que invadiam a cidade: "O problema da arquitetura moderna é que ela não constrói casas antigas".

Para viver, Quintana não desejava novidades. Pelo contrário, cultivava o passado como a um parceiro permanente de viagem. Do mesmo modo simples, não via necessidade em morar em amplos espaços. A uma amiga que se impressionou com o tamanho do quarto onde morava prestes a completar 80 anos (cedido pelo jogador e comentarista esportivo Falcão), explicou: "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas".

A argumentação não convenceu a moça, contratada para registrar em fotografia o Quintana do alto de seus 80 anos. Em negociação com os patrocinadores de seu projeto, descolou o que os gaúchos chamariam de "barbada": uma morada mais ampla em um apart-hotel, no centro de Porto Alegre, de graça, até a morte do poeta. No começo, ele titubeou, mas ao conhecer o espaço, encantou-se: "Tem até cozinha", afirmou surpreso e feliz.
FOTO DE LIANE NEVES

Foi este hotel, o Residence, o último de Quintana. Seu quarto está fielmente reconstruído em uma sala do Centro Cultural que leva seu nome. E ao conferir o endereço do local, me surpreendo. Antes de me tornar moradora da cidade, certa vez aportei por lá. Descobri que tenho pelo menos algo que me liga à vida desse anjo da poesia brasileira. Amém.

Ana Ângela Farias é jornalista e moradora de Porto Alegre.
Jornal O POVO – Porto Alegre

2 comentários:

Rosilei disse...

Uauuu... através da comunidade do Quintana no Orkut, encontrei o link do seu blog e vim conferir. É maravilhoso. Eu amo de paixão toda a obra do grande Mário Quintana. Vou levando o link para voltar mais e mais vezes, pois quero ler tudo a respeito desse grande poeta.
No mais, desejo-lhe um excelente dia. Beijo no coração.

Tais Luso de Carvalho disse...

Mario Quintana nunca viveu um casamento tradicional. Mas casou-se, por longos 75 anos, com aquela que deu guarida à maior parte de tudo o que lhe foi inspiração. Uma jovem experiente, que já contava com 147 anos de vida quando do encontro com o poeta. Uma jovem feliz, pois assim anuncia-se através de nome próprio, que leva a palavra "alegre" acompanhada de outra que descreve sua principal função na vida de Quintana: um porto.
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"Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas".
-----------------Lindo, isso.

Bernardo, te pediria para linkar teu blog num lugar de destaque no Porto das Crônicas por algum tempo; acho que é o mínimo que posso fazer para divulgar este teu precioso trabalho.
Bj
Tais luso