CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
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quarta-feira

ANJO MALAQUIAS


Retirado o tema inicial do texto de tradição católica, o anjinho rechonchudo é recriado com o humor característico do poeta, com um nome comum – Malaquias – e as asas em lugar errado. Entretanto, na releitura de Mario Quintana, existe um sentido maior para esse anjo pois ele tem a pureza, a inocência e a voz dos inocentes, das crianças (anjos) e dos desamparados. Seu pranto é ouvido por seres humanos adultos que cometem faltas e ficam em situações constrangedoras ou de muita culpa pelos erros cometidos. Da grande à pequena culpa, os homens criam seus problemas e tem de solucioná-los. Chora neles o inocente anjinho, prestes a ser “devorado” e sem saída, ou será que esperam a ação e a voz de Nossa Senhora para, num milagre, salvá-los de um perigo iminente? O conto assume o pensamento humano universal, que se faz de pecados e de perdão, de dor e de esperança...


O ANJO MALAQUIAS

O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos,
com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de
aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele.
Chamava-se Malaquias – tão pequenino e reconchudo, pelado,
a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da
primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o
Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre.
Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito...
saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe
apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima,
atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a
Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados
das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre
elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos
filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no
entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho
em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como
cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase...
E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam,
no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levantar o copo ao lábio,
interrompe o gesto e empalidece... – O Anjo! O Anjo Malaquias! –
... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos
que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um
pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...


(Melhores poemas Mario Quintana, São Paulo: Global, 2003, pp. 87-88)

3 comentários:

Elis disse...

Adoro este conto. É perfeito!!

Viva Quintana!!

Elis disse...

Amo este conto. É perfeito!

Viva Quintana!!

Elis disse...

Adoro este conto. É perfeito!!

Viva Quintana!