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quinta-feira

DO CADERNO H

Mais um gostoso texto de CADERNO H, onde Quintana confronta novamente a tradição com a modernidade, o novo e o velho. O texto se desenrola com simplicidade e numa linguagem regional, delicioso de acompanhar.

AQUELE ESTRANHO ANIMAL

Os de Alegrete dizem que o causo se deu em Itaquí, os de Itaquí dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada, sou neutro.
Mas pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades...Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.
Ia um piazinho estrada a fora no seu petiço – tropr, tropr, tropr – (esse é o barulho do trote) – quando de repente ouviu – fufufupumbum! Fufufupumbum chiiiipum!
E eis que a “coisa”, até então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.
“Minha Nossa Senhora!”
O piazinho deu meia-volta e largou numa disparada louca rumo à cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.
É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.
Chegado que foi, o piazinho contou a história como pode, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.
Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens uns com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo de carregar de pólvora, outros com boleaderas, mas todos a pé, porque também não houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com seus bodoques, cujos tiros iam acertar de cheio nas costas dos combatentes. E tudo abaixo de gritos e de pragas que nem lhes posso repetir aqui.
Até que enfim houve uma pausa para respiração.
O povo se afastou resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio do qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto, porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.
- A la pucha! – exclamou então um gasca, entre espantado e penalizado, - o animal deu cria!
Mario Quintana em CADERNO H.

3 comentários:

Tais Luso de Carvalho disse...

Adoro estes 'causos' do Quintana. Esta linguagem regionalista do interior é muito gostosa. Têm outras, com tantos regionalismos, que mal se compreende.

Geralmente as pessoas não sabem que isso se dá no interior, apenas. E que nós, de Porto Alegre, muitas vezes ficamos boiando. Boiando?? rsrsrs Aliás, temos o 'Dicionário Gauchês'. Para entender muitas coisas precisamos usá-lo.

Adorei o carango.
Abraço, amigo.
tais

Cha disse...

Já trabalhei este texto, adoro!
Gostei muito do blog, parabéns!

ESTER LÍGIA disse...

Amo esse texto. Amo Quintana. Sua simplicidade me emociona. Parabéns pelo Blog; realmente Mário Quintana é eterno. Abraços a todos.