Na obra de Quintana, chama a atenção a freqüência com que o autor manifesta, em sua poética, uma profunda consciência acerca da relação que se estabelece no texto poético entre memória e imaginação. Ele vislumbra “no par imaginário/memória uma realização particular da relação arte/realidade, ou seja, tudo o que é rememorado no poema, mesmo que não tenha sido vivido pelo homem empírico, nem por isso deixa de ser verdadeiro.
No Aprendiz de Feiticeiro, essa idéia quintaniana sobre memória e recriação também pode ser verificada em textos em que a lembrança e o sonho aparecem tematizados, apresentando-se como experiências mais agradáveis e sensíveis do que o contato direto do eu-lírico com a sua realidade.
DE REPENTE
Olho-te espantado:
Tu és uma Estrela do Mar.
Um minério estranho.
Não sei...
No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão.
Era sempre o teu seio!
Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...
Mas agora encheram-se de sombra os cântaros
E só o meu cavalo pasta na solidão.
In: Aprendiz de Feiticeiro.
No poema estão sinalizados dois momentos temporais. A primeira estrofe contém verbos no presente (olho-te, és) e indica a presença física do tu, cuja identidade feminina nos é sugerida pela palavra “seio”. A segunda e terceira estrofe referem-se a um tempo diferente, com verbos no pretérito. Esses momentos distintos não estão separados apenas pela sua localização no tempo, mas pertencem a experiências de natureza diversa vividas pelo poeta. Se a princípio, a imagem da “Estrela do Mar” nos inquieta, ao nos deixarmos envolver pela atmosfera de mistério que emana da primeira estrofe, percebemos que essa sensação de inquietude e dúvida é justamente o sentido buscado nos versos.
Por sua vez, as duas estrofes seguintes, que se referem ao momento passado, não marcado pela proximidade física do “tu” revelam um contato mais direto do poeta com sua amada. No passado, nos momentos em que era só lembrança, esse “tu” estava próximo, mostrava-se mais nitidamente. A memória que, para Mario Quintana, confunde-se com a própria imaginação, recriava-o e transformava-o segundo a sua vontade. Assim, a leitura de um livro, pela imaginação do poeta, era capaz de trazer para perto o que estava distante, o corpo da amada. Cada sensação vivida, “o morno da grama” o gosto da “polpa saborosa do pão”, podia ser o caminho para essa aproximação. As imagens que nos revelam esses momentos de memória denunciam o modo com que o poeta aguça seus sentidos para perceber a magia nos elementos do cotidiano.
Esses versos vinculam-se à idéia quintaneano de que a memória é capaz de tornar o passado mais verdadeiro, porque toda a memória é, na verdade, a transfiguração desse passado pela imaginação, a verdadeira forma de conhecimento. A realidade ameaça ruir seu mundo individual, constituído de sonho e da fantasia. Sua satisfação está no passado – porque pode ser recriado e transformado – ou no tempo sem datas da imaginação, sobre o qual o sujeito exerce seu poder criador sem limites.
Análise de Doris Munhoz de Lima
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