ESPANTOS
Neste mundo cheio de espantos
Longe das mágicas de Deus,
O que existe de mais sobrenatural
São os ateus
Tive a oportunidade, nos quase vinte anos em que trabalhei
no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, de conviver com o poeta Mario
Quintana. Nossas mesas de trabalho, na redação, ficavam vis-a-vis. Chegando à
tarde, depois de tomar um cafezinho no bar do jornal, o poeta punha-se a ler
sua própria poesia. Invariavelmente. Lá pelo final da tarde, pegava do lápis
(às vezes da caneta esferográfica) e começava a rabiscar naquele antigo papel
de jornal que nos era oferecido pela redação, antigas resmas de composição,
então já reduzidas a toalhas para secar as mãos. Enfim, o poeta, ao final da
jornada, às vezes já no início da noite, usava sua imensa máquina de escrever
Olivetti 88 e punha-se a digitar (literalmente, porque Mario escrevia com não
mais do que quatro dedos, dois de cada mão), com vagar, e eu diria, com método, o novo
poema, qual fênix, renascido de outros tantos que o mesmo poeta escrevera e ali
deglutira, antropofagicamente. É como se Mario Quintana conversasse
permanentemente consigo mesmo, numa espécie de solilóquio continuado, sobre o
qual igualmente já tive a oportunidade de escrever, em momento anterior.[3]
Aliás, para além do solilóquio, como processo de criação, pode-se registrar o
diálogo com o leitor, pressuposto no uso significativo da 2ª pessoa do
singular, como procedimento de recepção, antecipado pelo poeta, numa espécie de
escolha do leitor, como já o registrou Umberto Eco.[4] Não é de surpreender,
assim, que se deva reconhecer um continuum na criação poética de Quintana,
resultado dessa autoleitura, dessa constante reflexão em que não apenas palavra
puxa palavra, mas poema puxa poema. Por vezes, um único texto pode sugerir
tantas outras coisas, que o poeta prefere suspender aquelas potencialidades,
interrompendo o verso pela colocação das reticências... seria curioso, aliás,
estudar-se a relação entre essa pontuação gráfica, os versos em que ela é
usada, e o desdobramento que ela permite desses versos em outros poemas... Mas
para isso é preciso paciência... Os temas abordados por Quintana são variados,
mas quase sempre surgem em pares, cuja combinação é constituída de opostos: o fim
do mundo x a presença da eternidade; Deus x Diabo; poeta x poesia; velho x
antigo; passagem do tempo x progresso; anonimato x solidão etc. Os pares
antônimos se constroem também a partir de princípios ou conceitos: ausência
física x presença pela memória; tempo que corrói a vida x infinitude da morte
etc A associação de idéias é uma constante: a preocupação em distinguir
claramente os termos, também. Há enormes sutilezas, nessas distinções, como em
casos do anonimato x solidão: o anonimato é voluntário, é saudável; a solidão é
indesejada, é negativa, O anonimato permite o exercício da identidade, da
personalidade, do distanciar-se de si mesmo e assim ver-se de maneira crítica;
a solidão pode ocorrer até mesmo – e sobretudo - em meio à massificação. Pode-se
afirmar, por isso, que o principal procedimento criativo de Mario Quintana é a
reflexão sobre o próprio fazer poético. Para o escritor, o poema é como que a
ponta de um iceberg, não apenas da poesia que o poeta contém dentro de si, mas
de toda a poesia. O poema é, ao mesmo tempo, um disfarce do poeta: ele parece
falar de alguma coisa (aparente) mas, na verdade, está a tocar em um tema bem
mais profundo e certo. A poesia, por seu lado, é um encantamento: o poeta se
vale de palavras como fórmulas mágicas, criando uma atmosfera que
desvela/revela o mundo, produzindo o que poderíamos denominar de enobrecimento do cotidiano. Sendo a poesia irredutível, ela
se constitui na invenção da verdade, a partir de um procedimento fundamental: a
indagação. A importância dada por Mario Quintana à infância não é nenhum
saudosismo ou nostalgia. E, isso sim, a possibilidade de retornar a um momento
em que, metodologicamente, o ser humano está disponível para perguntar,
descobrir e espantar-se com as suas descobertas. O poeta, desse modo, enquanto
uma criança ingênua, é capaz de surpreender a vida em todas as suas
possibilidades, valendo-se justamente da dúvida enquanto procedimento de
conhecimento – e o poema, enquanto procedimento de socialização desse
conhecimento/descoberta.[5] O cerne da obra de Mario Quintana se apóia
exatamente nisso: o espanto da descoberta, colocando-se o interesse do poeta
menos na realidade do entorno em si mesma e muito mais nas mudanças que ela
sofre, com o passar do tempo, A poesia, por conseguinte, concretizada na forma
do poema, é como um pacote que deve ser aberto: a leitura do poema é a
revelação da surpresa que ele contém, a própria poesia, mas que não é delegável
a ninguém mais, senão ao leitor mesmo. Daí a afirmação que encontramos em certa
passagem de Na volta da esquina:[6] Os verdadeiros poetas lêem os pequenos
anúncios de jornais, ou seja, é a partir da realidade mesma, a realidade
anônima e cotidiana, que se concretiza a poesia, por aproximação. Baú de
espantos não foge a essas perspectivas.
Texto de Antonio Hohlfeldt como parte da introdução (O
instante, matéria-prima da poesia ) ao livro Baú dos Espantos
edição de 2006 publicado pela Ed. Globo.